1 de out. de 2021

'A Hora do Sétimo Anjo' (fragmento)

segundo caderno, sexta-feira, 4 de fevereiro de 1994

 Erico Verissimo deixou inacabado, manuscrito em inglês, o projeto de um novo romance.
Zero Hora reproduz as quatro únicas laudas da versão definitiva legadas pelo autor

Envolvido com suas memórias, Erico Verissimo acabou adiando o projeto do romance A Hora do Sétimo Anjo. Quando morreu, em 1975, deixou quase 400 laudas, manuscritas em inglês, em que sucessivas camadas coloridas de hidro cor denunciam esboços retomados, revisados, acalentados. Para comemorar o número 10 da revista Brasil/Brazil, uma publicação semestral dedicada à literatura brasileira coeditada pela PUC-RS e Brown University, dos Estados Unidos, a coordenadora do Acervo Literário de Erico Verissimo e editora associada da revista, Maria da Glória Bordini, organizou o primeiro trecho dos originais (cerca de 30 laudas). "Erico tinha o hábito de escrever em inglês desde O Tempo e o Vento. Dizia que era muito mais fácil assim: não tinha que se preocupar em prestar contas à língua", conta Maria da Glória. Nesta página, o primeiro trecho deixado por Erico na versão final.

O anjo inacabado Erico Verissimo deixou quase 400 laudas manuscritas em inglês daquele que deveria ser o último romance do Ciclo de Porto Alegre

"Eram cerca de quatro horas da tarde quando o Dr. Caio Mafra-Pomar entrou na pequena sala de trabalho de Frei Pio, no convento de Santo Antônio. O irmão leigo que o conduzira até ali retirara-se em silêncio, fechando a porta sem ruído. O monge estava de pé junto à janela, imóvel e meio irreal, como se fosse a sua própria estátua num museu de cera. Era um homem alto, encurvado e de aspecto frágil, a pele duma lividez cadavérica. Vestia o hábito pardo da sua ordem e estava de cabeça baixa, os olhos cerrados, os braços cruzados contra o peito.

Caio contemplava a visão, perturbado. Aquele pobre capuchinho devia estar seriamente enfermo. Arrependeu-se de ter vindo. Pensou até em ir-se embora na ponta dos pés. Deixaria um cartão com explicações... Mas naquele momento Frei Pio abriu os olhos, voltou a cabeça e exclamou, Ah! E os dois homens caminharam um para o outro, apertaram-se as mãos. Nunca se tinham visto antes. Padre, perdoe-me por ter vindo perturbar a sua paz.

Mas não, meu caro doutor! Eu esperava a sua visita com grande alegria. Por favor, sente-se. Vou ficar de pé por en quanto. Passei boa parte da tarde deitado, estou com o corpo um tanto entorpecido.

Caio sentou-se. A luz em cheio na face de Frei Pio. Em que museu do mundo e de tempo vira ele um frade como aquele? Bosch? El Greco? O capuchinho tinha uma face descarnada e triangular, de malares salientes. Seus cabelos, como a barba pontuda e rala, eram dum louro meio esverdeado e estriado de fios brancos e fulvos. No fundo de órbitas ossudas, seus olhos pareciam duas esferas de mercúrio e tinham uma fria neutralidade metálica.

- O senhor deve ter estranhado o meu telefonema... sorriu Caio. Hesitei muito antes de lhe pedir esta entrevista.

- Ora, por quê?

Quero desde o primeiro momento ser absolutamente sincero com o senhor. Sou um homem orgulhoso. Não me foi fácil vir aqui com... com o propósito que me traz. Não está sendo fácil.

Tirou do bolso o lenço para enxugar o suor do rosto. O padre olhava vago para a janela. Caio prosseguiu:

- Nem sei por onde começar...

- Então não comece. Vamos conversar sobre outros assuntos, como num encontro casual. Quando menos esperamos, deslizaremos para o âmago do seu problema. Faz um pouco de calor, hein? É o vosso famoso veranico de maio. Fique à vontade, doutor.

- Não quer tirar o casaco?

- Não, padre, muito obrigado. Tenho um amigo de mocidade que costuma dizer que sou o homem mais formal do mundo. A verdade é que eu não me sentiria muito bem em mangas de camisa. Não é mesmo uma tolice? Outra confissão, Frei Pio: sou um homem extremamente vaidoso. Veja, esta é a primeira vez que reconheço isso em voz alta na frente de outra pessoa.

- Se o que vou dizer serve de consolo, asseguro-lhe que nem nós, os sacerdotes, estamos livres da vaidade. E há tantos tipos de vaidade!

- Sou um homem exageradamente consciente e cioso de seu status social.

- Santo Deus! O senhor deve ter uma presença catalítica. É incrível, não estou achando nada difícil fazer-lhe essas confidências.

- Estimo ouvir isso. Embora não estejamos numa confissão, o senhor pode ficar certo de que considerei segredo confessional tudo, mas tudo que o senhor me disser.

- Não tenho a menor dúvida quanto a isso.

‘Pairava sobre o perfil dos edifícios uma névoa seca. Vinha de fora um cheiro de ramos de jacarandá queimados'

E de súbito se fez um silêncio. Caio cruzou as pernas, tendo o cuidado de não amassar as calças de alpaca inglesa azul-marinho. Olhou em torno. Havia na sala poucos móveis: uma mesa comum com papéis em cima, uma prateleira com uns poucos livros e duas ou três cadeiras de pau.

Caio levantou-se e ambos ficaram olhando para fora. Pairava sobre o perfil dos edifícios da cidade uma névoa seca ruço-rosada. Vinha de fora um cheiro de ramos de jacarandá queimados.

- É uma estação triste – murmurou Caio. – Posso fumar?

- Mas claro.

Caio acendeu um cigarro.

- O outono sempre me dá espécie de torpor de febre... que não é de todo desagradável. É uma estação que tem quatro... ou cinco dimensões, compreende? Eu a sinto assim.

- Antes do senhor chegar - disse o monge, - estive olhando esse céu incomparável, apreciando a qualidade dessa luz. Sabe duma coisa? Eu gostaria de escrever poemas... Ou pintar. Ou compor música. Mas infelizmente não tenho nenhum talento...

Não acredito, padre. Contaram-me maravilhas do senhor. Possivelmente gente que não me

conhece direito. - O senhor talvez não saiba, mas está se tornando uma espécie de legenda na cidade.

O monge voltou a cabeça para ele:

Está falando sério?

Claro que sim.

Mas por quê? Talvez por causa daquela tola reportagem que um dos jornais locais publicou sem o meu consentimento. Sobrevivente dum campo de concentração nazista vive num convento em Porto Alegre.

- Não é só isso, padre. O senhor já está, como diria um de nossos clássicos portugueses, em "odor de santidade".

- Eu, um santo? Que Deus nos livre desse boato! Com santos de meu calibre, a Igreja estaria perdida. Imagine se depois da minha morte começarem a aparecer retratos meus nos jornais com o meu nome e uma legenda: "A Frei Pio, por uma graça concedida". Acho que as autoridades eclesiásticas não deviam permitir coisas como essas.

Novo silêncio."




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