13 de out. de 2021

O Tempo e o Vento - A criação literária




Na mesma sala em que Erico revisava os originais, nos fundos da casa da Rua Felipe de Oliveira, ela procura na estante de livros a tradução inglesa de O Tempo e o Vento, Time and the Wind.
-Ele adorava quando chegava uma nova tradução. Abria o livro e dizia: "Que beleza de tradução". Eram textos em holandês, russo. Ele não entendia uma palavra. 
Mafalda conta que, depois de passar o dia inteiro na Livraria do Globo, trabalhando no livro, Erico também escrevia em casa - à noite e nos fins de semana. Acomodava a máquina no colo e datilografava com muita rapidez. O espaço entre uma linha e outra era sempre largo, para as correções à caneta. O próprio Erico passava a limpo as páginas corrigidas e, mais uma vez, deixava grandes entrelinhas, para novas correções. Distraído, fazia desenhos pelas margens. 
-Eu achava que ele desenhava bem, lembra Mafalda. - Ele dizia que não... 
Se milhares desses originais sobreviveram, foram manhas do acaso, da Livraria Globo, que guardou alguma coisa, ou de amigos que, presenteados, preservaram as relíquias. 
-Erico não se preocupava em guardar, recorda a viúva. Era muito desorganizado. 
Luis Fernando Verissimo, o hoje consagrado escritor e jornalista, não passava de um menino quando o pai escreveu O Continente. Lembra de ter lido muitas das páginas do futuro romance no momento exato em que os originais saíam da máquina: 
-Tenho a vaga lembrança de uma vez em que ele arregimentou toda a família para fazer uma revisão, comparando páginas corrigidas com a versão anterior. 
Luis Fernando diz que Erico gostava de falar sobre o que vinha escrevendo. Conversava com a família e com os amigos, principalmente com Mauricio Rosenblatt, secretário do Departamento Editorial da Livraria do Globo. 
O professor Flávio Loureiro Chaves, doutor em Letras pela USP, também cita o nome de Rosenblatt. Flavio foi amigo de Erico e Rosenblatt e assegura que o comerciante argentino, morto em 1988, era a única pessoa de quem o escritor aceitava palpites. 
Conta Flávio que, na época do lançamento de O Continente, as opiniões sobre o livro não foram muito fartas. Os críticos de direita achavam que Erico estava muito esquerda. Os de esquerda achavam que ele estava em cima do muro. Os de centro, nessa época nem existiam. 
Uma das primeiras resenhas que se publicou sobre o romance, em janeiro de 1950, no Correio do Povo, foi mandada de Nova York por um amigo do autor. O artigo de Limeira Tejo intitulava-se "A Civilização da Bravura", conforme grafia da época, e exaltava a sensibilidade criativa de Erico: 
-Só um antitrágico, como é o autor de O Tempo e o Vento, poderia contar, sem exaltações, uma história que é uma legenda de ódios, paixões, guerras. 
Três meses depois, o mesmo Correio do Povo publicaria uma carta aberta do ex-ministro Osvaldo Aranha:
 - Erico, li e reli o teu livro. Remocei e envelheci com sua leitura e sobremodo vi e revi a nossa terra e a nossa gente. 
Essas e outras resenhas conferiram a Erico o que ele chamou de succès d'estime. Poucos meses depois da publicação de O Continente, ele já estava escrevendo o segundo volume da trilogia. Começou a redigir O Retrato no verão de 1950, em Torres, num apartamento com vista para o mar. Terminado o veraneio, de volta a Porto Alegre, acomodou a sua Continental em cima da mesa de jantar e desandou a datilografar e redatilografar novas páginas, anotando nas entrelinhas e rabiscando pelas margens. 
O Retrato saiu em 1951, mas a sua continuação, O Arquipélago, só apareceu 10 anos mais tarde. A redação foi atropelada por uma longa temporada em Washington, pelo nascimento dos netos e até por um enfarte. A primeira edição do livro trazia na contracapa um desabafo do autor: 
- Depois de refeito dessa sangria que representou para mim O Arquipélago, estarei em condições de começar outro romance. Mas curto - pelo amor de Deus! - curto. 
O professor Jean Roche, ex-diretor da Aliança Francesa de Porto Alegre, lembra de ter visitado o amigo por essa época. Pelo telefone, do vilarejo de Cavalaire-sur-Mer, na Côte d'Azur, o literato francês de 82 anos recorda que o volume ainda não saíra da gráfica: 
- Erico estava exausto pelo trabalho que representara a conclusão do romance. Sentado numa poltrona, contava a história que acabara de criar. A voz rouca, mas o olhar faiscante. Ele falava com tanto entusiasmo que a gente via as personagens passando. Era como se elas desfilassem pela sala.

Caderno Cultura Especial - Jornal Zero Hora
SABADO, 18 de SETEMBRO de 1999
 


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