24 de out. de 2021

Trechos do livro MARIO QUINTANA da coleção: MESTRES DA LITERATURA

 “Para fazer o livro, reli várias vezes todos os livros do Mario e entrevistei pessoas que conviveram de perto com ele. Esses depoimentos, todos exclusivos, estão no livro. Então, por exemplo, tem lá a Lya Luft e o Luis Fernando Verissimo ...” (Márcio Vassallo, Autor)

MARIO QUINTANA - 1ªED.(2005) da coleção: MESTRES DA LITERATURA


SINOPSE

Muito se diz e se começa a escrever sobre Mario Quintana. Mais ainda há de se dizer e escrever na medida em que o poeta-bruxo for sendo descoberto, não no que, a gente sabe, tinha de delicado, engraçado, singular, excêntrico, poético. Mas no que havia nele (há, pois artistas não morrem, permanecem na sua obra) de profundo, dramático, secreto. O livro de Vassallo ajudará nisso, pois sua aparente singeleza oculta a visão de quem espia pela fresta o poeta quando está sozinho, solto, exposto.


"O Mario, além de um grande poeta, era um grande humorista. Ele frequentava bastante a nossa casa e era uma presença quieta e discreta. Minha mãe fazia muito meias de la para ele. Tantas que um dia ele observou: 'Acho que a Mafalda pensa que eu sou uma centopeia'. Uma vez fui levá-lo na casa do Josué Guimarães, e ele teve alguma dificuldade em sair do banco de trás. Disse: 'Como a gente tem perna, né?' Era um obcecado por jogo, e na vez em que foi atropelado pediu urgentemente, ainda do chão, que anotassem o número da placa do carro. Era para jogar na loteria. Nos encontramos no Rio, no Hotel Canadá, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. E ele nos contou que o que mais gostava no Rio eram os túneis, porque dentro dos túneis descansava da paisagem." (Luis Fernando Verissimo, escritor)

"Sinceramente, era quase impossível ter uma conversa linear com o Mario. Ele vivia em outro mundo, um mundo de espirais intelectuais. A sua presença neste mundo era ocasional. Parecia que se desligava das miudezas e fofocas deste planeta. Quando estava de boa lua, dizia umas frases geniais ou simplesmente de efeito. É claro que nós, seus amigos, não apreciávamos tais exílios poéticos que, com certa frequência, não passavam de estratagemas contra os importunos, os penetras. O próprio Mario teria dito a Manuel Bandeira, quando este manifestou interesse em conhece lo pessoalmente: Tu não sabes, Manuel, como eu sou desinteressante quando não estou em estado de poesia... Certo dia, ao ouvir a sua sobrinha Elena dizer-lhe que uma pessoa lhe estava telefonando, o Mario disse: 'Ah, certos amigos são uns chatos.... Então, temendo que eu me sentisse atingido, uma de suas assistentes observou-lhe; “Mario, o Trevisan pode se ofender com essa tua observação”. Após um breve silêncio, o poeta acrescentou; “ Depois, tem uma coisa. Os nossos amigos são os nossos chatos prediletos”. “Que lição de vida para nossa presunção”. (Armindo Trevisan, escritor) 

“Conheci Mario na redação do Correio do Povo, em Porto alegre, que por muitos anos foi o jornal mais importante, de São Paulo para baixo. Na época eu estava casada com Celso Pedro Luft , o famoso linguista e gramático. Eu, com vinte e poucos anos, aparecia na redação, tímida para mais de metro.  Às vezes, o Mario estava lá, fumando e batendo numa máquina de escrever velhíssima.  Aí ficava falando comigo, eu acho que meio enternecido. Assim, um dia, eu perguntei a ele: ‘Mario, o que é que você esconde naquela cômoda do seu quarto, de que tanto as pessoas falam?’ Ele arregalou os olhos feito uma velho ogro e disse,  se divertindo comigo; ‘Lá estão os cadáveres das minhas amadas mortais, que eu estrangulei  nas próprias tranças’. O Mario sempre foi muito gentil comigo. Eventualmente ele telefonava aqui pra casa, pra comentar alguma palavra com Celso. Era naturalmente curioso e apaixonado por palavras. Muita gente o achava difícil, maniático, sarcástico. Comigo foi sempre doce e gentil. A poesia do Mario é por vezes sublime, por vezes angelical, por vezes muito dolorida. Tenho pelo poeta uma imensa admiração. Quem quiser conhecer a melhor poesia brasileira não pode ignorar o Mario Quintana.” (Lya Luft, escritora)


Disponível na Biblioteca Erico Verissimo


13 de out. de 2021

O Tempo e o Vento - A criação literária




Na mesma sala em que Erico revisava os originais, nos fundos da casa da Rua Felipe de Oliveira, ela procura na estante de livros a tradução inglesa de O Tempo e o Vento, Time and the Wind.
-Ele adorava quando chegava uma nova tradução. Abria o livro e dizia: "Que beleza de tradução". Eram textos em holandês, russo. Ele não entendia uma palavra. 
Mafalda conta que, depois de passar o dia inteiro na Livraria do Globo, trabalhando no livro, Erico também escrevia em casa - à noite e nos fins de semana. Acomodava a máquina no colo e datilografava com muita rapidez. O espaço entre uma linha e outra era sempre largo, para as correções à caneta. O próprio Erico passava a limpo as páginas corrigidas e, mais uma vez, deixava grandes entrelinhas, para novas correções. Distraído, fazia desenhos pelas margens. 
-Eu achava que ele desenhava bem, lembra Mafalda. - Ele dizia que não... 
Se milhares desses originais sobreviveram, foram manhas do acaso, da Livraria Globo, que guardou alguma coisa, ou de amigos que, presenteados, preservaram as relíquias. 
-Erico não se preocupava em guardar, recorda a viúva. Era muito desorganizado. 
Luis Fernando Verissimo, o hoje consagrado escritor e jornalista, não passava de um menino quando o pai escreveu O Continente. Lembra de ter lido muitas das páginas do futuro romance no momento exato em que os originais saíam da máquina: 
-Tenho a vaga lembrança de uma vez em que ele arregimentou toda a família para fazer uma revisão, comparando páginas corrigidas com a versão anterior. 
Luis Fernando diz que Erico gostava de falar sobre o que vinha escrevendo. Conversava com a família e com os amigos, principalmente com Mauricio Rosenblatt, secretário do Departamento Editorial da Livraria do Globo. 
O professor Flávio Loureiro Chaves, doutor em Letras pela USP, também cita o nome de Rosenblatt. Flavio foi amigo de Erico e Rosenblatt e assegura que o comerciante argentino, morto em 1988, era a única pessoa de quem o escritor aceitava palpites. 
Conta Flávio que, na época do lançamento de O Continente, as opiniões sobre o livro não foram muito fartas. Os críticos de direita achavam que Erico estava muito esquerda. Os de esquerda achavam que ele estava em cima do muro. Os de centro, nessa época nem existiam. 
Uma das primeiras resenhas que se publicou sobre o romance, em janeiro de 1950, no Correio do Povo, foi mandada de Nova York por um amigo do autor. O artigo de Limeira Tejo intitulava-se "A Civilização da Bravura", conforme grafia da época, e exaltava a sensibilidade criativa de Erico: 
-Só um antitrágico, como é o autor de O Tempo e o Vento, poderia contar, sem exaltações, uma história que é uma legenda de ódios, paixões, guerras. 
Três meses depois, o mesmo Correio do Povo publicaria uma carta aberta do ex-ministro Osvaldo Aranha:
 - Erico, li e reli o teu livro. Remocei e envelheci com sua leitura e sobremodo vi e revi a nossa terra e a nossa gente. 
Essas e outras resenhas conferiram a Erico o que ele chamou de succès d'estime. Poucos meses depois da publicação de O Continente, ele já estava escrevendo o segundo volume da trilogia. Começou a redigir O Retrato no verão de 1950, em Torres, num apartamento com vista para o mar. Terminado o veraneio, de volta a Porto Alegre, acomodou a sua Continental em cima da mesa de jantar e desandou a datilografar e redatilografar novas páginas, anotando nas entrelinhas e rabiscando pelas margens. 
O Retrato saiu em 1951, mas a sua continuação, O Arquipélago, só apareceu 10 anos mais tarde. A redação foi atropelada por uma longa temporada em Washington, pelo nascimento dos netos e até por um enfarte. A primeira edição do livro trazia na contracapa um desabafo do autor: 
- Depois de refeito dessa sangria que representou para mim O Arquipélago, estarei em condições de começar outro romance. Mas curto - pelo amor de Deus! - curto. 
O professor Jean Roche, ex-diretor da Aliança Francesa de Porto Alegre, lembra de ter visitado o amigo por essa época. Pelo telefone, do vilarejo de Cavalaire-sur-Mer, na Côte d'Azur, o literato francês de 82 anos recorda que o volume ainda não saíra da gráfica: 
- Erico estava exausto pelo trabalho que representara a conclusão do romance. Sentado numa poltrona, contava a história que acabara de criar. A voz rouca, mas o olhar faiscante. Ele falava com tanto entusiasmo que a gente via as personagens passando. Era como se elas desfilassem pela sala.

Caderno Cultura Especial - Jornal Zero Hora
SABADO, 18 de SETEMBRO de 1999
 


1 de out. de 2021

'A Hora do Sétimo Anjo' (fragmento)

segundo caderno, sexta-feira, 4 de fevereiro de 1994

 Erico Verissimo deixou inacabado, manuscrito em inglês, o projeto de um novo romance.
Zero Hora reproduz as quatro únicas laudas da versão definitiva legadas pelo autor

Envolvido com suas memórias, Erico Verissimo acabou adiando o projeto do romance A Hora do Sétimo Anjo. Quando morreu, em 1975, deixou quase 400 laudas, manuscritas em inglês, em que sucessivas camadas coloridas de hidro cor denunciam esboços retomados, revisados, acalentados. Para comemorar o número 10 da revista Brasil/Brazil, uma publicação semestral dedicada à literatura brasileira coeditada pela PUC-RS e Brown University, dos Estados Unidos, a coordenadora do Acervo Literário de Erico Verissimo e editora associada da revista, Maria da Glória Bordini, organizou o primeiro trecho dos originais (cerca de 30 laudas). "Erico tinha o hábito de escrever em inglês desde O Tempo e o Vento. Dizia que era muito mais fácil assim: não tinha que se preocupar em prestar contas à língua", conta Maria da Glória. Nesta página, o primeiro trecho deixado por Erico na versão final.

O anjo inacabado Erico Verissimo deixou quase 400 laudas manuscritas em inglês daquele que deveria ser o último romance do Ciclo de Porto Alegre

"Eram cerca de quatro horas da tarde quando o Dr. Caio Mafra-Pomar entrou na pequena sala de trabalho de Frei Pio, no convento de Santo Antônio. O irmão leigo que o conduzira até ali retirara-se em silêncio, fechando a porta sem ruído. O monge estava de pé junto à janela, imóvel e meio irreal, como se fosse a sua própria estátua num museu de cera. Era um homem alto, encurvado e de aspecto frágil, a pele duma lividez cadavérica. Vestia o hábito pardo da sua ordem e estava de cabeça baixa, os olhos cerrados, os braços cruzados contra o peito.

Caio contemplava a visão, perturbado. Aquele pobre capuchinho devia estar seriamente enfermo. Arrependeu-se de ter vindo. Pensou até em ir-se embora na ponta dos pés. Deixaria um cartão com explicações... Mas naquele momento Frei Pio abriu os olhos, voltou a cabeça e exclamou, Ah! E os dois homens caminharam um para o outro, apertaram-se as mãos. Nunca se tinham visto antes. Padre, perdoe-me por ter vindo perturbar a sua paz.

Mas não, meu caro doutor! Eu esperava a sua visita com grande alegria. Por favor, sente-se. Vou ficar de pé por en quanto. Passei boa parte da tarde deitado, estou com o corpo um tanto entorpecido.

Caio sentou-se. A luz em cheio na face de Frei Pio. Em que museu do mundo e de tempo vira ele um frade como aquele? Bosch? El Greco? O capuchinho tinha uma face descarnada e triangular, de malares salientes. Seus cabelos, como a barba pontuda e rala, eram dum louro meio esverdeado e estriado de fios brancos e fulvos. No fundo de órbitas ossudas, seus olhos pareciam duas esferas de mercúrio e tinham uma fria neutralidade metálica.

- O senhor deve ter estranhado o meu telefonema... sorriu Caio. Hesitei muito antes de lhe pedir esta entrevista.

- Ora, por quê?

Quero desde o primeiro momento ser absolutamente sincero com o senhor. Sou um homem orgulhoso. Não me foi fácil vir aqui com... com o propósito que me traz. Não está sendo fácil.

Tirou do bolso o lenço para enxugar o suor do rosto. O padre olhava vago para a janela. Caio prosseguiu:

- Nem sei por onde começar...

- Então não comece. Vamos conversar sobre outros assuntos, como num encontro casual. Quando menos esperamos, deslizaremos para o âmago do seu problema. Faz um pouco de calor, hein? É o vosso famoso veranico de maio. Fique à vontade, doutor.

- Não quer tirar o casaco?

- Não, padre, muito obrigado. Tenho um amigo de mocidade que costuma dizer que sou o homem mais formal do mundo. A verdade é que eu não me sentiria muito bem em mangas de camisa. Não é mesmo uma tolice? Outra confissão, Frei Pio: sou um homem extremamente vaidoso. Veja, esta é a primeira vez que reconheço isso em voz alta na frente de outra pessoa.

- Se o que vou dizer serve de consolo, asseguro-lhe que nem nós, os sacerdotes, estamos livres da vaidade. E há tantos tipos de vaidade!

- Sou um homem exageradamente consciente e cioso de seu status social.

- Santo Deus! O senhor deve ter uma presença catalítica. É incrível, não estou achando nada difícil fazer-lhe essas confidências.

- Estimo ouvir isso. Embora não estejamos numa confissão, o senhor pode ficar certo de que considerei segredo confessional tudo, mas tudo que o senhor me disser.

- Não tenho a menor dúvida quanto a isso.

‘Pairava sobre o perfil dos edifícios uma névoa seca. Vinha de fora um cheiro de ramos de jacarandá queimados'

E de súbito se fez um silêncio. Caio cruzou as pernas, tendo o cuidado de não amassar as calças de alpaca inglesa azul-marinho. Olhou em torno. Havia na sala poucos móveis: uma mesa comum com papéis em cima, uma prateleira com uns poucos livros e duas ou três cadeiras de pau.

Caio levantou-se e ambos ficaram olhando para fora. Pairava sobre o perfil dos edifícios da cidade uma névoa seca ruço-rosada. Vinha de fora um cheiro de ramos de jacarandá queimados.

- É uma estação triste – murmurou Caio. – Posso fumar?

- Mas claro.

Caio acendeu um cigarro.

- O outono sempre me dá espécie de torpor de febre... que não é de todo desagradável. É uma estação que tem quatro... ou cinco dimensões, compreende? Eu a sinto assim.

- Antes do senhor chegar - disse o monge, - estive olhando esse céu incomparável, apreciando a qualidade dessa luz. Sabe duma coisa? Eu gostaria de escrever poemas... Ou pintar. Ou compor música. Mas infelizmente não tenho nenhum talento...

Não acredito, padre. Contaram-me maravilhas do senhor. Possivelmente gente que não me

conhece direito. - O senhor talvez não saiba, mas está se tornando uma espécie de legenda na cidade.

O monge voltou a cabeça para ele:

Está falando sério?

Claro que sim.

Mas por quê? Talvez por causa daquela tola reportagem que um dos jornais locais publicou sem o meu consentimento. Sobrevivente dum campo de concentração nazista vive num convento em Porto Alegre.

- Não é só isso, padre. O senhor já está, como diria um de nossos clássicos portugueses, em "odor de santidade".

- Eu, um santo? Que Deus nos livre desse boato! Com santos de meu calibre, a Igreja estaria perdida. Imagine se depois da minha morte começarem a aparecer retratos meus nos jornais com o meu nome e uma legenda: "A Frei Pio, por uma graça concedida". Acho que as autoridades eclesiásticas não deviam permitir coisas como essas.

Novo silêncio."




A Livraria do Globo da Rua da Praia

  A escultura de ferro no topo do prédio da Rua dos Andradas (Rua da Praia), talvez continue despercebida devido à pressa dos dias de hoje. ...