15 de jul. de 2022

Escrita à moda antiga

    Sob a guarda do Instituto Moreira Salles, encontram-se seis preciosas máquinas de escritores e estudiosos da literatura brasileira, como o euclidiano Olímpio de Souza Andrade, os romancistas Erico Verissimo, Lygia Fagundes Telles e Rachel de Queiroz, além da poetisa Ana Cristina Cesar. 
    O fascínio contemporâneo por esses aparatos parece coincidir com um ressurgimento de mídias analógicas, como o disco de vinil e a Polaroid.. . Nessas engenhocas mecânicas, cada letra do alfabeto se convertia em nota que compunha o romance, a carta, o poema etc. Além do som peculiar, o balé gestual que ela exige – desde a colocação da folha de papel à sua retirada – e a ação de “bater” em cada tecla para dar impulso ao mecanismo de gravação faziam desta uma forma muito corporal de escrita. 
    A história dessas máquinas começa em 1575, quando o italiano Francesco Rampazzetto inventou um apetrecho que imprimia letras em papéis. Em 1714, Henri Mill obteve a primeira patente de um dispositivo similar a uma máquina de escrever, cuja invenção, segundo o Museu da Ciência de Londres, só se concretizou em 1830, nos Estados Unidos, com o “Tipógrafo”, que imprimia uma letra após a outra e concedeu ao seu inventor, William Burt, o título de “pai da máquina de escrever”, embora a história seja um pouco mais controversa do que aparenta. 
    Ao longo do tempo, os aparatos sofreram diversas mudanças em sua estrutura e design, e a escolha de cada escritor parece, agora, simbólica. Enquanto Olímpio de Souza Andrade preferiu a sobriedade de uma Royal marfim, Erico Verissimo não resistiu à tentação de ter a mesma máquina em extravagante cor vermelha. A Royal, marca norte-americana das mais conhecidas no mercado, foi comercializada anos depois de sua concorrente, a Remington, que já era um sucesso comercial desde 1875, quando Christopher Sholes e Carlos Glidden patentearam seu modelo (Type-writer) e fizeram um acordo com a empresa para que fosse produzido em quantidade. Na Royal vermelha, o ficcionista gaúcho escreveu, dentre outros, a parte principal de seu último romance, Incidente em Antares, na casa da filha Clarissa, nos Estados Unidos.

Erico Verissimo com sua Royal vermelha, s.d. Fotógrafo não identificado. Arquivo Erico Verissimo/Acervo IMS


    Luis Fernando Verissimo conta que o pai escrevia na mesa da sala de jantar e, depois, no escritório, ou na “toca”, como gostava de chamar o lugar oficial de trabalho. Ali ficava a tarde toda, até cerca de 19 horas. A última máquina adquirida por Erico foi uma elegante IBM preta, elétrica, que parecia ser a sua favorita e também pertence ao seu acervo. Com destreza e rapidez, ele escrevia diretamente à máquina, deixando espaços entre as linhas para possíveis correções e alguns desenhos. 
    Essa forma de escrever diferia da maneira como trabalhavam as escritoras citadas, que, apesar das máquinas, não abandonaram a prática do manuscrito. É o caso de Lygia Fagundes Telles, dona de uma Remington Junior preta sempre colocada sobre a mesa de trabalho. A autora tinha o hábito de primeiro escrever à mão e só depois datilografar.

A Remington Junior preta de Lygia Fagundes Telles, 2013. Fotografia de Marcio Isensee. Arquivo Lygia Fagundes Telles / Acervo IMS


    No quarto de Ana Cristina Cesar ficava a Consul bege, que, às vezes, levava para a sala de jantar. Mas, segundo o poeta e amigo Armando Freitas Filho, a máquina só era usada para escrever artigos, resenhas etc. Poesia – regra geral para suas composições – era sempre escrita à mão. 
    E é curioso que o clássico de Rachel de Queiroz, O Quinze, tenha sido escrito a lápis, à luz de uma lamparina a querosene, ainda que, provavelmente, a moça de 20 anos incompletos não tivesse então acesso a uma S&N cinza como a que viria a adquirir no futuro. As máquinas teriam grande importância na vida de Rachel e, nem mesmo no ambiente rural e franciscano da fazenda Não Me Deixes, no sertão de Quixadá, onde viveu com a família e a que voltava regularmente, abriu mão de ter uma à sua disposição. Pelo olhar do fotógrafo Edu Simões, a máquina e a lâmpada, que substituem o lápis e a lamparina de outrora, não destoam, antes se harmonizam com as paredes caiadas de branco, a varanda e o piso de madeira, a rede e os mosqueteiros – véus que, ao sabor do vento, desvelam a passagem do tempo e conferem à foto e ao ambiente uma sensação de paz e esquecimento. Quase se pode ver a escritora sentada à mesa, em frente à máquina, que se tornaria seu principal instrumento de trabalho como jornalista.

A máquina de Rachel de Queiroz na fazenda Não me Deixes, 1997. Foto de Edu Simões. Arquivo Edu Simões/ Acervo IMS

Rachel de Queiroz com sua máquina de escrever, c. 1950. Fotógrafo não identificado. Arquivo Rachel de Queiroz/Acervo IMS


    Outro que se dedicou ao jornalismo e fez desta sua atividade principal foi Otto Lara Resende. É também a máquina como instrumento de trabalho – e muito mais do que isso – que se pode depreender do momento flagrado por Helena Lara Resende no escritório do pai.

Otto Lara Resende no escritório, 1992. Foto de Helena Lara Resende. Arquivo Otto Lara Resende/Acervo IMS

    Na foto, percebe-se a intimidade entre homem e máquina, a natureza solitária do trabalho do escritor e o balé gestual já referido: enquanto a mão esquerda segura as folhas já retiradas da máquina, a direita confunde-se com o próprio papel nesse movimento. 
    Se as máquinas caíram em desuso, o fascínio que exercem chegou ao séc. XXI e tem atraído cada vez mais jovens que só agora começam a descobrir os prazeres de escrever em uma Smith Corona, Underwood ou Remington. Elas voltaram a ser utilizadas, tanto nos type-ins, encontros em que aficionados se reúnem para escrever, quanto nas residências, como artigos de decoração. Para colecionadores há, até mesmo, um evento internacional: a International Typewriter Collectors Convention. A última edição ocorreu de 7 a 10 de agosto de 2014 em Milwaukee, Wisconsin, nos Estados Unidos.

LYZA BRASIL - 2014

8 de jul. de 2022

Depoimento de Elena Quintana

    Uma das primeiras coisas que achei importante na minha vida era que meu nome não tinha H e eu tinha um tio que era poeta e escrevia no Correio do Povo uma coluna chamada Caderno H. Eu dizia para todo mundo que era sobrinha do Mario Quintana. A poesia dele que mais gostava era Canção da Garoa: "Em cima do meu telhado, / Pirulim, lulim, lulim, / Um anjo, todo molhado, / Soluça no seu flautim".

    Todos os domingos, a casa de meus avós ficava cheia de primos, primas, tios e amigos da família. Tio Mario visitava meu avô, seu irmão mais velho. Nessas ocasiões, eles conversavam, mexiam em livros e tratavam de coisas que não sabíamos ou não compreendíamos, porque as crianças andavam por tudo, menos no escritório que era o lugar deles.

    Meu avô fazia um álbum sobre o tio Mario, juntando todo o material que se publicava sobre ele, e também cadernos para nós, os netos, brincarmos. Eram álbuns de figuras e quadrinhos feitos em papel embrulho. Foi com meu avô que aprendi a rimar. Uma vez ele me deu um livro bem grosso de poesia infantil, e eu li todo. Meu avô era ótimo, e o tio Mario concorda comigo.

    Aos nove anos, escrevi minha primeira poesia, e tio Mario publicou no Correio Infantil do Correio do Povo. Daí eu não queria mais ser professora, nem veterinária, eu queria ser poeta e jornalista.

    Depois o meu avô morreu, o tio Mario já não aparecia mais com tanta frequência e nem eu. Quando ele dava autógrafos em algum lançamento, eu ia, sempre com medo de não ser reconhecida, mas ele me olhava e dizia - "Ora viva!".

    Nessa época, eu não me encontrava muito com ele, mas foi quando realmente li a sua obra. Quando mais eu lia, mais gostava. Eu havia pegado o clic de Mario Quintana.

    A obra dele me assustou, e eu desisti de ser poeta. Era muita responsabilidade ser sobrinha do poeta e poeta. Quando vi, anos mais tarde, havia virado secretária de Mario Quintana, poeta do Rio Grande do Sul e do Brasil, que todos querem homenagear, com quem todos querem falar e que nem sempre está afim de ser público. Então, depois de conhecer o tio Mario, a obra do Mario Quintana, eu continuava preferindo o tio poeta.

Elena Quintana, sobrinha do poeta. Porto Alegre, setembro de 1984.

Elena Quintana, sobrinha e herdeira de Mario Quintana


Fonte:

1. Quintana, Mario - Biografia - Literatura sul-rio-grandense. 2. Literatura sul-rio-grandense - Quintana, Mario - Obra completa - estudo crítico. 3. Bibliografia - Quintana, Mario I. Título II. Série.

A Livraria do Globo da Rua da Praia

  A escultura de ferro no topo do prédio da Rua dos Andradas (Rua da Praia), talvez continue despercebida devido à pressa dos dias de hoje. ...