O texto foi redescoberto pelo jornalista e pesquisador Vilmar Ledesma.
O conto passeia pelos bairros de uma Porto Alegre de cadeiras na calçada e bares alemães.
Em dezembro de 1939, uma edição especial de Natal da revista O Cruzeiro, trazia, nas páginas 34, 35 e 36, um misto de conto/crônica de Natal assinado por Erico Verissimo. A narrativa passeia por vários bairros da Porto Alegre de 1939, flagrando diferenças sociais e étnicas da cidade ao retratar como tipos característicos de cada vizinhança encaram a noite de Natal. É o retrato de uma Porto Alegre ainda muito germânica, algo que a II Guerra, que naquele ano já havia eclodido na Europa, mudaria muito.
Video no youtube Porto Alegre de Erico Verissimo
NOITE DE NATAL EM PORTO ALEGRE
POR ERICO VERISSIMO
As estrelas caíram no Guaíba. Piscam luzes nas ilhas escuras. O motor duma lancha bate surdo e alto como um enorme coração medroso. Junto do cais há uma floresta desgalhada de mastros. A água marulha, mole, bate no costado dos barcos adormecidos. Na proa de um navio alemão que veio de Hamburgo recorta-se o vulto dum homem. Dou uma estrela pelos seus pensamentos: talvez ganhe, em troca, um lindo poema. Dou duas estrelas... três estrelas... todo o céu... Olhe que vou bater... Todo o céu, meu romântico marinheiro, inclusive a lua, as nuvens e os querubins... O homem continua imóvel. Nada feito. Sigo adiante, passo pelos guindastes que não têm Natal. Paro para contemplar um veleiro, vejo luzes lá dentro, ouço vozes, o som duma cordeona. Depois é uma barcaça de carão, uma draga, de novo um navio mercante. Um caíque se aventura rio em fora, um vulto rema sereno, a noite é tão silenciosa ali no cais que julgo ouvir a suave batida dos remos ferindo a água. Decerto aquele homem vai pescar estrelas. É preciso uma grande rede para pescar estrelas. (Quando é que a gente se livra do fantasma do Tagoro?) Jogo o meu cigarro no rio, desejo-lhe um “Feliz Natal!” e sigo para a cidade.
DIÁLOGO
- No Norte, o Natal é diferente... – dizia meu amigo
pernambucano.
- Este entusiasmo pelo Natal – expliquei – este costume de
enfeitar pinheirinhos e fazer que o Papai Noel apareça na véspera de Natal, nos
foram trazidos pelos imigrantes alemães. Ensinaram-nos também muitas
outras coisas. Algumas boas, outras más...
- É curioso. A filha do dono de minha pensão dá a
Papai Noel um nome esquisito.
- Pelznickel... Era assim que muitas das crianças de meu
tempo lhe chamavam... Christkindchen é o Menino Jesus... e não eram só as c
rianças de sangue alemão que conheciam e usavam esses nomes...
Pausa. Continuamos a andar. Aproximamo-nos da
rua dos Andradas. Mergulhamos no clarão dos combustores e dos letreiros
luminosos. A rua está negra de gente. Dos cafés vem o clamor de
vozes, risadas, música...
Meu companheiro para debaixo de um grande anúncio a gás
neon. Por um instante seu rosto fica purpúreo, e eu penso no conto de Poe
A Máscara da Morte Vermelha...
BAR ALEMÃO
Em cima do balcão de mármore, perto da máquina
registradora, ergue-se uma minúscula árvore de Natal. As velas coloridas
estão acesas, e os penduricalhos lampejam, refletindo as luzes da sala.
As mesas acham-se quase todas ocupadas. Sentamo-nos
perto do aquário. Um dos peixinhos japoneses encosta o focinho no vidro,
à altura de minha cabeça, e fica me olhando.
- São conhecidos? – indaga o meu companheiro.
- Ah... conhecemo-nos de cumprimento.
Um garçom se aproxima. Pedimos chopes.
Uma vitrola arremessa para o salão os compassos duma valsa
de Strauss. Aceitamo-la como se aceitam as coisas inevitáveis.
Olha em torno. Talvez sejamos os únicos brasileiros
puros (puros?) no bar. Só vejo epidermes claras, algumas caras
apopléticas, cabeleiras que vão desde o castanho bronzeado e chegam, via-ruivo
e cor-de-palha, até o louro de platina. Um minuto de silêncio em
homenagem a Jean Harlow.
- Prosit! – diz meu companheiro.
- Prosit – respondo. E, depois do primeiro gole,
ainda com um bigode de espuma, acrescento – Qual! O de que nós dois
precisamos é de uma bela nacionalização...
As conversas crescem, sobem como ondas quentes. Faz
calor. Um senhor gordo passa o lenço pela nuca vermelha, lustrosa e
pregueada. Uma vasta senhora ciclópica abana-se com um leque, bate com
ele nos seios fartos que decerto já amamentaram algum Siegfried.
As paredes do bar estão eriçadas de pontas de cervo.
Viva a falta de malícia germânica!
Os peixes nadam por entre algas. Faz de conta que
elas são as suas árvores-de-natal. Mas... nada de sentimentalismos em
torno de peixes.
Strauss retirou-se de cena. Agora saem da vitrola os
acordes duma doce melodia conhecida. Há como que um vácuo na sala:
um súbito buraco de silêncio se abre. E de repente, sem o comando dum
maestro, todos começam a cantar “Sttile Nacht, Heilige Nacht...” Parece
que se sentem felizes. Mas duma felicidade triste. Lembram-se
decerto de Vaterland. E no entanto muitos deles são apenas netos de
alemães, nunca viram a Alemanha a não ser em cartões-postais.
Raça... uma grande coisa, amigo! Mas que perigo! Pegamos o chope e saímos.
COMISSÃO JULGADORA
Concurso de árvores de natal instituído por uma grande
empresa. Lá vai serenamente dentro dum Lassale a comissão
julgadora. Poetas, jornalistas, pintores, escultores e um senhor do
comércio local. Visitam as casas que se inscreveram no concurso.
São recebidos com amabilidades, doces e bebidas. Na primeira casa, tudo
ótimo. Uma linda árvore. Crianças adoráveis. Um casal muito
simpático. Passam para a segunda casa. A mesma cena. Mais
bebidas. Já o mundo, para a comissão julgadora, passa a ser um estranho
lugar cheio de alegrias fumegantes, de gente adorável e da mais absoluta e
excitante alegria. Terceira casa. “Agora queremos oferecer aos
senhores alguma coisinha para beber...”. Ótima ideia. E lá se vai a
comissão julgadora. Quarta casa. O presidente da comissão entra na
sala, olha a árvore de Natal e depois chama o secretário para um canto e, com
voz arrastada e grossa, lhe pergunta:
- Senhor secretário... não acha... não acha... que é um
esbanjamento inútil... fazerem... du... duas árvores de Natal?
O secretário, que já não pode com o peso das pálpebras,
fixa o olhar no pinheiro enfeitado e protesta:
- Perdão, Senhor presidente... Duas não... Três!
NA FLORESTA
Passamos por uma casa de janelas iluminadas.
Relanceio os olhos para dentro da sala. Basta aquela visão rápida para eu
recompor depois mentalmente a cena. O dono da casa deve se chamar Shultz
ou Schmidt. Trabalha numa firma alemã da Rua Sete. Tem três
filhos: Willy, Karl e Trude. Estão esperando o Pelznickel...
A árvore de Natal vem exercen do suas funções regularmente há seis anos, desde
que Willy nasceu. Frau Schultz ou Schmidt fez uma linda cuca. Há
dois barris de chope na área. Os rapazes da firma vão aparecer.
“Que farra!” – antegoza o senhor Schultz ou Schmidt. Cantarão abraçados
canções engraçadas. Pelznickel vai trazer uma boneca para trude,
soldadinhos nazistas para Karl e um avião de bombardeio para Willy.
NA RUA DUQUE
É uma casa alta e antiga, com azulejos. Família
tradicional. Grande árvore de Natal na varanda.
O dono da casa é médico. Tem quatro filhos. Os
dois primeiros acreditam em Papai Noel, os outros dois não.
O rádio enche a casa de música. Vozes alegres se
escapam pelas janelas escancaradas.
Dona M aria vai buscar os gelados no refrigerador. Na
grande mesa alinham-se pratos com sanduíches, nozes, avelãs, castanhas e
passas. Ouve-se o estouro de uma garrafa de champanhe que se abre.
Não há canções tradicionais.
O senhor nacionalista conversa com um tenente do exército:
- Pois é. Precisamos acabar com esses
estrangeirismos. Nada de Papá Noel ou de Pelznickel. Vovô Índio...
É... Vovô Índio. Que diabo! Temos neve? Temos pinheiro?
Isso é coisa para a Europa.
- A América para os americanos – obtemperou o oficial.
O senhor nacionalista fica um instante pensativo e depois
continua:
- E porque não promovemos o nosso Negrinho do
Pastoreio a papai Noel? Ficava admirável. Em vez de pinheiro, um
umbu... ou outra árvore menor... Bastava acender uma vela para o Negrinho
e ficar a pedir um presente...
Ficou sorrindo não para o tenente mas para a própria ideia.
CIDADE BAIXA
Aqui nessa zona de casas melancólicas, pequenas e velhas
começou a cidade. Olho discretamente para dentro de uma casa de porta e
janela e vejo uma árvore de Natal solitária no centro da pequena sala.
Luz amarelada a alumiar meia dúzia de caras tristes. Casa decerto de um
modesto funcionário público que não foi contemplado no reajustamento.
Ele, a mulher, a filha solteirona, a filha noiva ao lado do eterno noivo (que
decerto também não foi contemplado em coisa nenhuma nesta vida). Estão
tristes e graves, parece que a árvore de Natal é uma criança morta e eles estão
ali em silêncio, velando o anjinho...
NOS NAVEGANTES
Para as famílias que moram nas velhas barcaças encalhadas
na praia do Navegantes não há Natal.
NOS MOINHOS DE VENTOS
Palacete dum industrialista alemão que ficou rico com a
guerra (a primeira). Grande parque com palmeiras, pinheiros e outras
árvores que a escuridão e a falta de conhecimento de botânica me impedem de
classificar.
Janelas fechadas. A fraulein que cuida da casa saiu
com o namorado, um mecânico ruivo e atlético. Decerto a esta hora estão
bebendo num bar qualquer.
Os donos da casa foram passar o Natal na Alemanha.
NO BONFIM
O Bonfim é o “ghetto”. Lojas, cafés, dois cinemas,
judeus velhos sentados nas frentes das casas, barrete negro na cabeça, barbas
longas grisalhas ou completamente brancas. Mocinhos e Mocinhas a passear
nas calçadas. O Centro Social Israelita. Salões de bilhar.
Aqui e ali uma casa de família brasileira.
Para esta gente Cristo ainda não nasceu.
Mas aquela meninazinha que ali está na calçada, de dedo na
boca, e que se chama Lea, deita olhares compridos de inveja para a árvore de
Natal que cintila na casinha da família brasileira.
COLÔNIA AFRICANA*
Uma zona em que as fronteiras do “ghetto” e da Colônia
Africana se misturam. Começamos a ver negros e negras endomingados para
festejar o Natal. Alguns deles foram ao “cabelizador” alisar a carapinha,
muitos botaram na cabeça, no lenço, na lapela uma loção que tem um cheiro que
lembra o doce de batatas.
A rua é de terra batida cor de rosa. A casa, de
tábua. A família é grande e há muitos convidados. A maioria deles
se acha no terreiro, debaixo das árvores. Um mulato cabelizado toca um
violão. Um preto começa a tocar um samba. O refresco corre a rosa
(framboesa, naturalmente).
Na sala de visitas há um presépio encardido. E também
um pequeníssimo e esmirrado pinheirinho cheio de curiosos enfeites: vidros de
iodo vazios, lâmpadas elétricas queimadas, colares de contas coloridas,
vidrilhos e flores de papel de seda.
Tudo indica que a festa vai acabar em macumba.
DÚVIDA
Nas ruas alguns homens se abraçam e quase todos parecem
alegres. Desejam-se bom Natal e muitos aproveitam o pretexto para tomar
tremendas bebedeiras.
- Eu só queria saber uma coisa...
- Que é? – indagou o companheiro.
- É se essa gente realmente se lembra que hoje se festeja o
nascimento de Jesus...
O amigo parou, franziu a testa numa careta de estranheza e
exclama:
- Mas é mesmo, rapaz! E eu que nem me lembrava
disso!?
NOTA SENTIMENTAL
O Natal do poeta solitário que não tem família nem
esperança e que anda pelas ruas como cachorro sem dono a olhar para as
estrelas?
Oh! Não... Mil vezes não!
Revista O Cruzeiro, 23 de
dezembro de 1939
- A
região em que se localizava a Colônia Africana é o hoje bairro Rio Branco
(nota do editor).
Fonte: ZeroHora/Caderno PrOA em 19/12/2015