26 de ago. de 2021

Escreve Justino Martins O Destino Bate à Porta Uma entrevista com Erico Verissimo A história de “Saga” A Experiência de um Romancista

Fonte: REVISTA DO GLOBO
ANO: XII
nº: 276 - 22/06/1940

O burro é a "mascote" de Erico Verissimo e, portanto, tinha que aparecer na fotografia. "Assim seremos três, disse Erico".

E, agora, mergulhado no fundo de uma poltrona contemplo Erico Verissimo à minha frente, numa atitude introspectiva, o sobrecenho esquerdo fazendo curvas na testa, o olhar perdido numa distância incomensurável, bem como eu tenho encontrado tantas vezes. Certamente ele anda pelo mundo, um mundo muito seu, acompanhado daquela pandilha de figurinhas de tinta que nos representam em sua obra.

O fotógrafo saiu e deixou os vestígios do crime. No tecto, prende-se uma nuvem de fumaça leitosa e em todo o gabinete vaga um cheiro seco e ardente que quase nos sufoca. Abro a janela e olho o perfil de Erico. Ele continua viajando e não o interrompo. Conheço-o muito bem sei que será inútil fazer qualquer pergunta no momento. Até sinto vontade de desistir da entrevista.

“Levanto”? Não levanto?”

E me quedo de novo na poltrona. Só, então, me ocorre aproveitar o tempo rememorando o que sei de Erico Verissimo.

FOI ALÉM DOS SEUS DESEJOS...

Olho em tôrno. Livros ingleses, muitos livros ingleses descendo e subindo os armários. Nas paredes, excelentes cópias de um “moço” de Van Gogh e da “Olimpia” de Manet. Depois, Soneto Cósme , um tal de Costa e de novo Van Gogh em pequenas litografias semeadas pelos cantos.

E a primeira coisa que me surge é uma auto-definição que o romancista me deu, certa vez, a propósito de uma pergunta à toa: “No fundo, o que sou é bugre que leu muito os ingleses. O resultado são esses livros que andam por aí...”.

Vem-me ainda, à lembrança, outra vez em que Erico Verissimo disse ter hesitado entre literatura e a pintura. Só se decidiu em 1931, quando já contava 25 anos de idade e Manoelito de Ornelas lhe tinha “arrancado” o primeiro trabalho da gaveta. Entretanto, confessou-me jamais ter sonhado com uma carreira literária como a que fez. Seu único desejo era poder encontrar um editor e algumas dezenas de leitores de boa vontade... e nada mais.

Pouco egoísta, sem dúvida, ele tem tido muito mais do que desejava.

Daquele livrinho de contos “Fantoches”, publicado em 1932, Erico Verissimo passou, em seguida, para “Clarissa”, a novelinha onde já se anunciavam os desígnios de toda a sua obra e onde, pela primeira vez, foi traçado o contorno de um rosto moreno, ornado de cabelos negros repartidos ao meio. A menina Clarissa, um ano mais tarde, iria ser a companheira de outra personagem importante (Vasco, o Gato do Mato) que apareceria em “Musica ao Longe”, o romance que deu a Erico o Prêmio Machado de Assis, instituído pela Companhia Editora Nacional.

Mas a história literária de Erico Verissimo é bastante conhecida. Dentre os que apreciam a moderna literatura brasileira não há quem não a tenha acompanhado passo a passo.  Não há quem, lendo um livro seu, tenha podido fugir à tentação de ler os outros e esperar ansiosamente os que ele promete. Porque Erico Verissimo, ao meu ver, sem deixar de estar integrado ao movimento de renovação por que passou a literatura nacional desde 1930, dirige-se para um horizonte à parte, encaminha-se por uma estrada diferente daquela que segue a maioria dos nossos romancistas.

Sua obra, dentro do espírito universalista que a orienta, obriga-o a um constante restabelecimento, embora se absorvendo completamente na exposição de um único e poderoso tema: os problemas essencialmente humanos. E isto, sem dúvida, tem sido a causa do seu maior sucesso.

Assim, será talvez desnecessário dizer aqui que depois de “Musica ao Longe” ele escreveu “Caminhos Cruzados”, “Um Lugar ao Sol” e finalmente,  esse “Olhai os Lírios do Campo” que lhe valeu a consagração definitiva de público brasileiro.

Mas nunca será demais lembrarmos que a febril atividade literária de Erico, ofereceu-nos, ainda, uma serie de outros livros escritos “nas horas de descanso”, entre um romance publicado e outro a publicar, e que esses livros pesam também na sua bibliografia como obras excelentes de divulgação cientifica e histórica. ““A Vida de Joana D’Arc”, “Viagem à Aurora do Mundo”, “As Aventuras de Tibicuera”, Aventuras no Mundo da Higiene” e mais um punhado de livros infantis que alcançam hoje tiragens fabulosas.

E sobre o homem?            

“SOU UM ANIMAL ESSENCIALMENTE DOMÉSTICO...”

O meu contato frequente com Erico Verissimo, facilita-me uma quase perfeita análise de seus característicos pessoais. Homem calado, um tanto tímido, que se sente mal quando está no meio de muita gente, ele mesmo confessa ser “um animal essencialmente doméstico, que cultiva a paciência e a tolerância”. Acha que o senso de humor nos pode salvar de muita situação irremediável e, apesar de odiar a violência, diz que devemos exercê-la contra a violência, quando necessário.

A súmula do seu programa de vida, conforme me disse certa vez, está encerrada nestas poucas palavras do clássico espanhol Fray Luiz de Leon: “A beleza da vida está em que cada um proceda de acordo com sua natureza e seu oficio.”

Dono de um alto poder de compreensão humana, Erico Verissimo sempre consegue uma explicação para todos os atos humanos. E é por isso, talvez, que ele suporta, por exemplo, um cidadão desconhecido que surge lá do cafundó do mundo para convida-lo a conversarem de literatura. Fica extasiado como se estivesse ouvindo uma declaração de amor. Porêm, não está ali. Anda muito longe, sempre naquele mundo que ele mesmo construiu para si.

EU QUERO UMA ENTREVISTA!

E é aquilo o que mais ou menos está acontecendo comigo, agora.

- Eu quero uma entrevista!

Erico olhe-me com o queixo apoiado na mão. Parece estar preocupado, mas descarrega logo o pensamento com um suspiro resignado:

- A hora é escura. Ninguém sabe o que está para vir. Mas seja o que for, é preciso ter coragem e esperança.

Vejo que ele regressou. Voltou daquele mundo. Andava na guerra certamente com Vasco e outras figurinhas de “Saga”, o romance que está terminando. Não nesta guerra a que se referiu a sua frase, mas na outra, a da Espanha de Franco e Garcia Llorca.

Estou curioso como vocês, leitores, para ouvir Erico Verissimo. E arrisco:

- Você...

- Eu? Não passo dum simples contador de histórias ...

- Não é isto não. Quero que conte alguma coisa sobre o livro “Saga”. Como chegou ao plano do livro?

Os sobrecenhos sobem e descem. O rosto de Erico é uma reticência aflitiva para mim. Finalmente vejo-o tomar um lápis e rabiscar num papel, enquanto começa:

- Vasco estava querendo aparecer... Muitos leitores me escreviam reclamando o reaparecimento do Gato do Mato. Ora, um rapaz como ele não podia por mais tempo refrear o seu desejo de aventura e liberdade... Não era natural que ele fosse lutar na Espanha, na Brigada Internacional? Foi o que aconteceu. Lá se operou a sua reeducação sentimental diante do perigo. A vida se lhe apresentou em sua rude crueza. Vasco viu homens de várias raças e estudou-os nos campos da retaguarda, na trincheira, nas horas de calma, no momento de perigo e, finalmente, num campo de concentração em meio da maior miséria e desolação.

- E ele volta para o Brasil? – Interrogo, ansioso.

- Consegue voltar. Reencontra Clarissa e com ela velhos conhecidos: o dr. Seixas, Fernanda, Noel. Faz novas relações. Encontra-se com dr. Eugênio do “Olhai os Lírios”, além de mais uma boa dezena de outras personagens novas.


Há um globo terrestre sobre um dos armários de livros. Olho-o de baixo e percebo a costa atlântica do Brasil, o oceano e, lá em cima, em direção ao Polo Norte, Portugal e a Espanha. Como o mundo é pequeno!

- Mas você não esteve na guerra da Espanha... Como é, então que pode escrever sobre ela?

Erico solta o lápis, cruza as mãos nos joelhos:

- Eu lhe pergunto: o escritor que estuda a psicologia dum criminoso precisa, necessariamente, ter cometido também um crime? O artista que pinta o retrato duma mulher precisa “ter sido mulher?” “Será que um romancista já “viveu” todas as situações que descreve em seus livros? Claro que não. No caso de “Saga” sirvo-me de dados que foram fornecidos por um ex-combatente da Brigada Internacional. Isso, no que diz respeito à rotina dos combatentes, à organização de milícia, ao “clima”. Os tipos, bem como os episódios principais, são invenção do autor...

- Podemos dizer, então, que se trata duma ficção contra um fundo de realidade?

- Está certo.

- E quanto à técnica?

 - E’ a mais simples e direta possível. O livro todo é narrado por Vasco. Na segunda parte temos oitenta por cento de diálogo. Vamos encontrar Vasco a se mover no meio duma colorida sociedade.

- Pouca paisagem?

- Quase nenhuma... Nada de literatice, quero crer. Vasco reproduz trechos do seu diário – mas apenas aqueles que contribuem para formar o grande painel.

Fico pensando, por segundos, numa lição de Erico sobre um preceito que nenhum ficcionista deve perder de vista: “É preciso um pouco de tudo para fazer um mundo”. Mas há ainda uma pergunta:

- E Vasco encontra o seu rumo?

- Encontra.

- Qual é?

Erico larga o joelho e retoma o lápis.

- Não seja curioso...

- Mas... – insisto, inconformado, - nenhum rumo definitivo?  

- Que é que é definitivo neste mundo?

Calo. Estou desconcertado, e continuaria assim se Erico não voltasse de novo ao “Saga”.

- O que há em “Saga”, principalmente na primeira parte, são tipos humanos a agir e falar em circunstâncias excepcionais; na segunda, tipos humanos a viver a vida normal de uma cidade como a nossa. A minha preocupação não foi descrever a “vida de Pôrto Alegre”, mas apenas dar o tom duma cidade de hoje, com muito de seus aspectos e complicações.

- Em quantas partes se divide o livro? – Pergunto.

- Em três partes e uma quarta que não passa de um capitulo.

- Levam títulos?

- Sim. “O círculo de Giz”, ‘Sórdido Interlúdio”, “o Destino Bate à Porta” e o capitulo que leva o nome de “Pastoral”.

“O destino bate à porta”. A frase fica brincando em meus ouvidos.

A LIBERDADE DE SER E DISCUTIR



Já se tem escrito muito sobre a obra de Erico Verissimo. Pró contra. Muito mais pró do que contra. Porque, afinal de contas, o mundo estaria errado, de acordo com a própria concepção de Erico, se não houvesse discordâncias na alma humana. Sempre é necessária uma pequena dose de bom senso e outra de má vontade, para neutralizar. E é isto que os romancistas chamam “o pitoresco da vida”. Assim como existem os que procuram compreender tudo racionalmente, há os que vêm nos menores incidentes “um caso de polícia” ou “um atentado aos preceitos de qualquer coisa”. E, depois de tudo, todos têm o direito de ver como querem e como entenderem. Eu, por exemplo, não gosto de um dos livros de Erico Verissimo. Não gosto literalmente. Mas nem por isso, vou querer definir a sua obra. Seria pretensão demasiada. Por outro lado, penso agora e concordo com uma frase feliz de Maurício Rosenblatt que definiu paralelamente Vianna Moog e Erico Verissimo: “para Vianna Moog existem principalmente os problemas políticos e sociais: para Verissimo os morais e psicológicos”. Faço, pois, a pergunta com um ar de quem descobriu a América:

- De sorte que para você o importante é a paisagem humana...

- Claro. O homem e seus problemas, desejos, sonhos, esperanças, angústias, alegrias. Esse grande e continuo tumulto que se chama vida.

- E quanto à orientação espiritual das personagens?

- Elas têm toda a liberdade. Eu não as escravizo. Há no livro católicos, ateus, protestantes, céticos, cínicos... enfim, eles são o que são e no romance há a liberdade de ser e discutir.

OS LIVROS CAEM DE MADUROS

Observo agora que Erico encheu uma folha de papel com palavras e figurinhas, enquanto falava comigo. Sei que ele desenha. Folheando os álbuns da “Revista do Globo”, tenho encontrado muitas ilustrações de contos feitas por ele, quando era seu diretor. Bom desenhista? Interessante. Mas os calungas da folha de papel são notáveis. Há um que parece estar pulando. Vive, por certo. E a minha curiosidade obriga-me a perguntar, para não deixar que Erico fuja para o mundo novo.

- Você desenha, não é?

- Sim. Desenho estes calungas e faço com eles esquemas de situações. Não que isto seja indispensável, mas é que a coisa me diverte, e, para mim, a melhor maneira de pensar é rabiscando caretas num papel.

- Ahh!... E como é que planeja um livro?

- Parto de uma ideia, como no caso dos “Lírios do Campo” e depois escolho as personagens e os episódios. Ou, então, parto da personagem, como no caso de “Clarissa”. Em “Musica ao Longe”, temos uma ideia – a decadência duma família local e a ascensão de um emigrante – e o aproveitamento de uma personagem anterior – Clarissa.

- E o enredo?                            

- E simples. Eu não penso com palavras, mas com fatos. Passo a viver interiormente com as personagens: vejo-as a se moverem, falando, sentindo. E o livro me vai amadurecendo no espírito, até o dia em que cai de maduro. E cai no papel.

O MUNDO DEIXA DE EXISTIR

Nestes últimos dias, muitas vezes surpreendi Erico Verissimo a escrever “Saga”. Sob a luz de um “abat-jour”, acomodado na poltrona, com a máquina sobre os joelhos e alguns papéis em torno, pelo chão, ele datilografa metralhando em pequenas folhas de papel (½ folha almasso).

Não escreve capítulos salteados, pois certamente, acha que o homem é um feixe de memórias e o que uma personagem faz ou diz no capitulo 12, por exemplo, é de certo modo uma consequência de coisas acontecidas nos capítulos anteriores. Por isso, escreve o livro na ordem direta, de preferência.

Seus dois filhos, Clarissa e Luiz Fernando, que não sabem o que é o silêncio, quase sempre fazem questão de brincar no gabinete. Mas nada interrompe Erico Verissimo. O mundo em volta dele deixa de existir e ele fica completamente integrado no ambiente do livro. E quem pensar que Erico utiliza algum fichário, ou consulta enciclopédias, se engana. Porque só depois de todo o livro escrito é que faz as emendas à mão e com tinta verde. A cor da tinta, disse-me ele, influi muito nestas emendas.

O FINAL DA FESTA

Um bocejo. Dois bocejos. A entrevista está dando sono. Erico se levanta e vai a janela. Eu também vou. Olho para baixo e vejo o chão a quarenta metros. Longe, o Alto da Bronze, o Guaíba, um morro, nuvens. O sobrecenho de Erico está de novo fazendo curvas na testa.

- Algum plano? Outro livro em preparo?

- Nada disso. Não se sabe o que está para vir. A hora é incerta. E se “Saga” não fosse uma história em torno destas inquietações de hoje, eu nem teria escrito agora. Vou me atirar na leitura de bons livros, ouvir música e esperar... Desejo que volte a paz ao mundo. Tenho esperança na América e no Brasil. Acredito no socialismo, num estado descente, justo em que cada homem possa adorar o seu Deus e viver a sua vida de acordo com seus ideais.

Diante de tanta frase bonita e de tão bela profissão de fé, Luiz Fernando põe fim à festa jogando uma bolinha de vidro do armário. Plim!






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