SUPLEMENTO ESPECIAL - ZH - 17/12/75
Um dos últimos textos escritos por Erico Verissimo, há pouco mais de um mês, foi para a apresentação de um álbum de gravuras de artistas gaúchos, que está sendo lançado à venda (apenas 500 exemplares) em benefício do Lar dos Velhos mantido pela Sociedade Israelita Riograndense. Evocando Unamuno, Erico compôs um hino à vida da forma como ele a entendia e que está presente em toda sua obra. O original do texto até aqui inédito, assinado pelo autor, é o que apresentamos no fac-símile ao lado.
Sofremos tempos
terríveis. Nos meus momentos de pessimismo, tenho
a impressão de que os homens estão aos poucos morrendo afogados em seus
próprios detritos, no mais estúpido dos suicídios. De todas as a poluições que
hoje nos afligem a do ar, a da terra e a da água nenhuma é mais letal do que a
poluição dos espíritos, esse tipo de sujeira que leva as criaturas humanas a se
odiarem e agredirem umas as outras.
No entanto nunca
como em nossos dias conseguiu o homo sapiens leva-la mais longe os feitos de
sua inteligência, de seu engenho e de sua capacidade inventiva. Os geneticistas
aproximam-se cada vez mais da descoberta do segredo da vida. Explora-se o
espaço sideral. Pés humanos já pisaram o solo da Lua, os cérebros eletrônicos
fazem prodígios. A Física e a Bioquímica avançam com passadas de gigante.
Era de esperar-se que
com todo esse progresso cientifico e técnico, a esta altura de sua História os
homens já tivessem aprendido a viver em paz uns com os outros, sem ódios nem
conflitos de natureza econômica, racial, política ou religiosa, num mundo em
que houvesse espaço físico e psicológico, alimentos, instrução, habitações,
vestuário, assistência médica e hospitalar, paz para todos. Desgraçadamente
pouco ou nada disso tem acontecido. A violência e a agressividade são a nota
tônica de nossa época. A inflação dos preços dos bens de consumo aumenta de
maneira assustadora, ao mesmo passo que, na bolsa de valores éticos, nunca uma
vida humana desceu a preço mais vil, genocídio parece ter-se transformado no
esporte favorito dos povos chamados fortes. Duas guerras monstruosamente
destruidoras mancham vergonhosamente nosso século, milhões de seres humanos
através do mundo buscam no uso de drogas alucinógenas ou entorpecentes uma
porta de fuga duma vida que temem ou, detestam ou com a qual não se conformam.
Para onde vai então à humanidade?
Este introito um
tanto apocalíptico tem por fim fazer às vezes dum envelope de chumbo dentro de
qual envio aos que me lerem um bilhete de esperança. Estou certo de que mais
dia menos dia, os homens hão de encontrar as veredas da paz e do amor. Para
esse encontro está destinado as artes em geral um papel de enorme importância.
Permitam-me contar
agora uma estória histórica. Em 1936, logo no princípio da sangrenta Guerra
Civil espanhola, realizou-se na antiga e famosa Universidade de Salamanca uma sessão
cívica comemorativa do Dia da Raça. Estavam presentes, além de professores e
alunos, altas autoridades civis, militares e eclesiásticas. O Gen. Millán
Astray, membro da Falange franquista, pronunciou então um discurso violento, no
qual atacou as províncias vascas e andaluzas, perorando com o brado de
"Viva Morte”.
![]() |
Unamuno, ao deixar a Universidade de Salamanca em 12 de outubro de 1936 |
Don Miguel de
Unamuno, o grande escritor e humanista espanhol, então reitor da Universidade,
ergueu-se de sua poltrona e sem perder a serenidade, rosetou as palavras do
truculento líder falangista, dizendo, entre outras coisas, que aquele grito de
"Viva la Muerte!" era insensato e necrófilo. O Gen. Astray, irado,
gritou:" abaixo a inteligência!" Unamuno imperturbável, prosseguiu
"Este é o templo do intelecto e ou. o seu Sumo sacerdote. Vocês vencerão
porque tem força bruta mais que suficiente. Mas não convencerão porque, para
convencer, é preciso persuadir. para persuadir vocês precisarão do que lhes
falta. Razão e Direito."
Tive a oportunidade
de, trinta anos depois dessa agitada sessão, visitar a Casa de Unamuno, na
cidade de Salamanca. Sobre a mesa do gabinete de trabalho do grande escritor,
ao lado dum original manuscrito e de seus óculos, vi alguns de seus passarinhos
de papel que o mestre costumava fazer como passatempo, e com grande habilidade.
Ado Malagoli, Alice
Brueggmann, Alice Soares, Carlos Scliar, Carlos Tenius, Xico Stockinger,
Danúbio Gonçalves, Romanita Martins, Vasco Prado e Zorávia Bettiol - admiráveis
artistas plásticos - doaram generosamente trabalhos de sua autoria para formar
esta coleção, cuja finalidade como se sabe, das mais nobres. Congratula-me com
esses legionários da paz e da fraternidade, na certeza de que, como eu, eles
acreditam na vitória final dos "pajaritos de papel" de Miguel de Unamuno sobre a
espada do Gen. Astray.
"Viva a
vida: "
Nenhum comentário:
Postar um comentário