4 de fev. de 2022

vídeo - Erico Verissimo e sua esposa Mafalda visitam o amigo Mario Quintana no Hotel Majestic

Uma produção de 1974 por Fernando Sabino e David Neves





 O escritor Erico Verissimo e sua esposa, Mafalda, passaram a lua-de-mel no Majestic Hotel, vindos de Cruz Alta, em 1931.

10 de jan. de 2022

vídeo - Artista Plástico Freddy Sorribas faz homenagem a Erico Verissimo em 1993

Vídeo de Freddy Sorribas na Biblioteca Erico Verissimo CCMQ

 


Anualmente a Biblioteca Erico Verissimo mantinha atividades voltadas para a divulgação das obras de seu patrono. Naquele ano de 1993, foram organizadas programações durante a semana como forma de dar destaque a sua obra literária. Uma delas foi à execução de uma obra pictórica relativa à literatura de Erico Verissimo. Essa obra foi executada nos dias 17 e 18 de dezembro, no espaço interno da Biblioteca, onde ficou exposta até o ano de 2020.





Freddy Enrique Sorribas Crespi (1948 -2017) foi um artista Uruguaio.
Começou a estudar pintura em 1957 e teve a oportunidade de ter aulas com Américo Sposito e Carlos Llanos e a partir desse momento continuou a desenvolver-se como artista, onde utilizou cores fortes e poderosas, bem como o intenso sentimento pessoal sobre elas.
Reconhecido por seus trabalhos, é considerado um artista que desenvolveu suas técnicas de precisão e vigor, além de sua expressão de liberdade. Sua carreira foi premiada em diversos locais como Porto Alegre, Nova York, Buenos Aires e também em Acapulco.




5 de nov. de 2021

Casa de Cultura Mario Quintana - março de 1991- Projeto Original



APRESENTAÇÃO

A Casa de Cultura Mario Quintana foi pensada e planejada para a realidade cultural do Rio Grande do Sul. Deve, portanto, ter a clara consciência de estar situada num país de terceiro mundo, com suas limitações e carências, e saber tirar proveito deste fato: se faltam meios, há tempo e espaços disponíveis e cabe a nós preencher este tempo e ocupar os espaços.

Deve repensar sua latinidade sem traumas, de forma positiva.

Deve buscar o contemporâneo, sem esquecer as raízes e as etnias que contribuíram para a sua formação.

Deve ser ágil, dinâmica, criativa, inquisidora, crítica, buscando o acerto mesmo através do erro; adolescente e não senhoril. E deve, principalmente, ousar, e ousar muito, pois somente aos que têm ousadia é dado acordar no futuro.

Sergio Napp Diretor da CCMQ

HISTÓRICO

Início do século XX. A modernidade estava presente em todas as correntes do pensamento humano. A era moderna, iniciada no final do século passado, trazia a ciência e a tecnologia a serviço do homem. Os automóveis, os aviões, o telefone e os grandes movimentos culturais transformavam o perfil das capitais.

Em meio a esta agitação cultural, nascia na Porto Alegre província um projeto audacioso. O arquiteto alemão Theo Wiederspahn, contratado por Horácio de Carvalho, surpreendia a todos ao projetar em estilo neoclássico, dois prédios interligados por passarelas, que cruzavam por cima de uma via pública e tinha em seu topo duas cúpulas. Em 1923, os irmãos Masgrau, arrendatários do prédio, inaugurariam ali o Hotel Majestic.

As características diferenciadas do prédio e o atendimento dos arrendatários dariam popularidade ao local. No hotel desfilavam artistas, intelectuais e personalidades, como os ex-presidentes Getúlio Vargas, João Goulart, o escritor Erico Veríssimo e os cantores João Gilberto, Dalva de Oliveira, entre muitos outros.

O tempo foi passando, a cidade romântica do início do século foi crescendo, dando lugar aos grandes e frios espigões, a violência e a poluição. Surgia a decadência e a desumanização de que padecem as áreas centrais de todas as grandes cidades.

O grande Hotel Majestic não escapou a esta realidade. Entrava na década de setenta longe de seu esplendor, deixando de ser um hotel tradicional, para abrigar, basicamente, moradores permanentes.

Um de seus mais ilustres moradores foi Mario Quintana. O poeta ali viveu de 1968 até 1980, quando o prédio foi fechado definitivamente como hotel.

Sem brilho, desgastada e consumidas pelo tempo, a bela edificação estava ruindo. Eram os vazamentos e pinturas descascando e rebocos caindo. Mesmo assim, a obra projetada no início do século, ainda chamava atenção pela importância arquitetônica e histórica. Precisava ser preservada e recuperada.

Em 1980, o Governo do Estado, através do Banco do Estado do Rio Grande do Sul, adquire o prédio. Evita-se assim, uma provável demolição para dar lugar a outro espigão.  Já se pensava nesta época em instalar um centro de cultura no prédio do antigo Majestic. Começaria uma nova etapa para o surpreendente edifício que havia funcionado como hotel por 57 anos. Permanecendo desativado por mais de dois anos, em março de 1983 um espaço de exposições é inaugurado no térreo, sendo o prédio reaberto na tentativa de instalar o centro de cultura. No mês de julho do mesmo ano, um projeto aprovado na Assembleia Legislativa denomina o novo espaço cultural de Casa de Cultura Mario Quintana, homenageando o grande poeta e antigo morador do então Hotel Majestic. Dois anos mais tarde, o prédio seria tombado pelo patrimônio Histórico e Artístico do Estado.

A partir de sua abertura como Casa de Cultura, e por seis anos o prédio funcionaria precariamente. A primeira administração esteve a cargo da professora bibliotecária Ivette Zietlon Duro, substituída em 1984, pela artista plástica Iara Gay Castro e posteriormente, em 1986 pela especialista em educação, Maria Gercira de Moura Diniz. Devido à falta de condições do edifício era possível utilizar tão somente o térreo e o primeiro andar.

O Hotel Majestic para abrigar a sonhada Casa de Cultura pedia restaurações urgentes. Constatada, a total impossibilidade para desenvolver qualquer trabalho naquelas condições, iniciou uma verdadeira luta na busca de recursos no sentido de recuperação e reciclagem da edificação. Conforme algumas ideias, das administrações estaduais anteriores, a obra poderia levar até trinta anos para ser concluída. Porém, durante a administração Simon-Guazzelli, em 1987, sob a direção do engenheiro e artista Sérgio Napp, um projeto do que deveria ser uma Casa de Cultura começou a ser estudado junto com a sua recuperação. O prédio viabilizava a ocupação de seus espaços internos para as mais variadas atividades. Em julho, deste mesmo ano, o estudo preliminar foi apresentado ao público e as instituições culturais para ampliar as discussões sobre o futuro da obra. Em março de 1989, o anteprojeto de autoria dos arquitetos Joel Gorski e Flávio Kiefer, foi concluído. O projeto dotaria o prédio de uma total integração em todas as áreas internas, onde se desenvolveriam as atividades culturais. Num trabalho inovador, em termos culturais e arquitetônicos a futura Casa de Cultura Mario Quintana permitiria um contato visual de todos os trabalhos presentes em seu interior. O novo lado a lado, com o antigo.

PROJETO

O projeto previu ainda a necessária infraestrutura moderna para o seu perfeito funcionamento. Iluminação, prevenção contra incêndios, ar condicionado, computador, antena parabólica e outros itens que fariam da Casa de Cultura Mário Quintana das mais completas da América Latina. Em julho de 1989, foi assinado o contrato entre o Estado e a empresa que viria realizar a obra. A Casa foi fechada para dar lugar ao canteiro de obras.



A postagem apresentou a introdução do folheto original.

O folheto completo está disponível para consulta local na Biblioteca Erico Verissimo.


1 de out. de 2021

'A Hora do Sétimo Anjo' (fragmento)

segundo caderno, sexta-feira, 4 de fevereiro de 1994

 Erico Verissimo deixou inacabado, manuscrito em inglês, o projeto de um novo romance.
Zero Hora reproduz as quatro únicas laudas da versão definitiva legadas pelo autor

Envolvido com suas memórias, Erico Verissimo acabou adiando o projeto do romance A Hora do Sétimo Anjo. Quando morreu, em 1975, deixou quase 400 laudas, manuscritas em inglês, em que sucessivas camadas coloridas de hidro cor denunciam esboços retomados, revisados, acalentados. Para comemorar o número 10 da revista Brasil/Brazil, uma publicação semestral dedicada à literatura brasileira coeditada pela PUC-RS e Brown University, dos Estados Unidos, a coordenadora do Acervo Literário de Erico Verissimo e editora associada da revista, Maria da Glória Bordini, organizou o primeiro trecho dos originais (cerca de 30 laudas). "Erico tinha o hábito de escrever em inglês desde O Tempo e o Vento. Dizia que era muito mais fácil assim: não tinha que se preocupar em prestar contas à língua", conta Maria da Glória. Nesta página, o primeiro trecho deixado por Erico na versão final.

O anjo inacabado Erico Verissimo deixou quase 400 laudas manuscritas em inglês daquele que deveria ser o último romance do Ciclo de Porto Alegre

"Eram cerca de quatro horas da tarde quando o Dr. Caio Mafra-Pomar entrou na pequena sala de trabalho de Frei Pio, no convento de Santo Antônio. O irmão leigo que o conduzira até ali retirara-se em silêncio, fechando a porta sem ruído. O monge estava de pé junto à janela, imóvel e meio irreal, como se fosse a sua própria estátua num museu de cera. Era um homem alto, encurvado e de aspecto frágil, a pele duma lividez cadavérica. Vestia o hábito pardo da sua ordem e estava de cabeça baixa, os olhos cerrados, os braços cruzados contra o peito.

Caio contemplava a visão, perturbado. Aquele pobre capuchinho devia estar seriamente enfermo. Arrependeu-se de ter vindo. Pensou até em ir-se embora na ponta dos pés. Deixaria um cartão com explicações... Mas naquele momento Frei Pio abriu os olhos, voltou a cabeça e exclamou, Ah! E os dois homens caminharam um para o outro, apertaram-se as mãos. Nunca se tinham visto antes. Padre, perdoe-me por ter vindo perturbar a sua paz.

Mas não, meu caro doutor! Eu esperava a sua visita com grande alegria. Por favor, sente-se. Vou ficar de pé por en quanto. Passei boa parte da tarde deitado, estou com o corpo um tanto entorpecido.

Caio sentou-se. A luz em cheio na face de Frei Pio. Em que museu do mundo e de tempo vira ele um frade como aquele? Bosch? El Greco? O capuchinho tinha uma face descarnada e triangular, de malares salientes. Seus cabelos, como a barba pontuda e rala, eram dum louro meio esverdeado e estriado de fios brancos e fulvos. No fundo de órbitas ossudas, seus olhos pareciam duas esferas de mercúrio e tinham uma fria neutralidade metálica.

- O senhor deve ter estranhado o meu telefonema... sorriu Caio. Hesitei muito antes de lhe pedir esta entrevista.

- Ora, por quê?

Quero desde o primeiro momento ser absolutamente sincero com o senhor. Sou um homem orgulhoso. Não me foi fácil vir aqui com... com o propósito que me traz. Não está sendo fácil.

Tirou do bolso o lenço para enxugar o suor do rosto. O padre olhava vago para a janela. Caio prosseguiu:

- Nem sei por onde começar...

- Então não comece. Vamos conversar sobre outros assuntos, como num encontro casual. Quando menos esperamos, deslizaremos para o âmago do seu problema. Faz um pouco de calor, hein? É o vosso famoso veranico de maio. Fique à vontade, doutor.

- Não quer tirar o casaco?

- Não, padre, muito obrigado. Tenho um amigo de mocidade que costuma dizer que sou o homem mais formal do mundo. A verdade é que eu não me sentiria muito bem em mangas de camisa. Não é mesmo uma tolice? Outra confissão, Frei Pio: sou um homem extremamente vaidoso. Veja, esta é a primeira vez que reconheço isso em voz alta na frente de outra pessoa.

- Se o que vou dizer serve de consolo, asseguro-lhe que nem nós, os sacerdotes, estamos livres da vaidade. E há tantos tipos de vaidade!

- Sou um homem exageradamente consciente e cioso de seu status social.

- Santo Deus! O senhor deve ter uma presença catalítica. É incrível, não estou achando nada difícil fazer-lhe essas confidências.

- Estimo ouvir isso. Embora não estejamos numa confissão, o senhor pode ficar certo de que considerei segredo confessional tudo, mas tudo que o senhor me disser.

- Não tenho a menor dúvida quanto a isso.

‘Pairava sobre o perfil dos edifícios uma névoa seca. Vinha de fora um cheiro de ramos de jacarandá queimados'

E de súbito se fez um silêncio. Caio cruzou as pernas, tendo o cuidado de não amassar as calças de alpaca inglesa azul-marinho. Olhou em torno. Havia na sala poucos móveis: uma mesa comum com papéis em cima, uma prateleira com uns poucos livros e duas ou três cadeiras de pau.

Caio levantou-se e ambos ficaram olhando para fora. Pairava sobre o perfil dos edifícios da cidade uma névoa seca ruço-rosada. Vinha de fora um cheiro de ramos de jacarandá queimados.

- É uma estação triste – murmurou Caio. – Posso fumar?

- Mas claro.

Caio acendeu um cigarro.

- O outono sempre me dá espécie de torpor de febre... que não é de todo desagradável. É uma estação que tem quatro... ou cinco dimensões, compreende? Eu a sinto assim.

- Antes do senhor chegar - disse o monge, - estive olhando esse céu incomparável, apreciando a qualidade dessa luz. Sabe duma coisa? Eu gostaria de escrever poemas... Ou pintar. Ou compor música. Mas infelizmente não tenho nenhum talento...

Não acredito, padre. Contaram-me maravilhas do senhor. Possivelmente gente que não me

conhece direito. - O senhor talvez não saiba, mas está se tornando uma espécie de legenda na cidade.

O monge voltou a cabeça para ele:

Está falando sério?

Claro que sim.

Mas por quê? Talvez por causa daquela tola reportagem que um dos jornais locais publicou sem o meu consentimento. Sobrevivente dum campo de concentração nazista vive num convento em Porto Alegre.

- Não é só isso, padre. O senhor já está, como diria um de nossos clássicos portugueses, em "odor de santidade".

- Eu, um santo? Que Deus nos livre desse boato! Com santos de meu calibre, a Igreja estaria perdida. Imagine se depois da minha morte começarem a aparecer retratos meus nos jornais com o meu nome e uma legenda: "A Frei Pio, por uma graça concedida". Acho que as autoridades eclesiásticas não deviam permitir coisas como essas.

Novo silêncio."




26 de ago. de 2021

Escreve Justino Martins O Destino Bate à Porta Uma entrevista com Erico Verissimo A história de “Saga” A Experiência de um Romancista

Fonte: REVISTA DO GLOBO
ANO: XII
nº: 276 - 22/06/1940

O burro é a "mascote" de Erico Verissimo e, portanto, tinha que aparecer na fotografia. "Assim seremos três, disse Erico".

E, agora, mergulhado no fundo de uma poltrona contemplo Erico Verissimo à minha frente, numa atitude introspectiva, o sobrecenho esquerdo fazendo curvas na testa, o olhar perdido numa distância incomensurável, bem como eu tenho encontrado tantas vezes. Certamente ele anda pelo mundo, um mundo muito seu, acompanhado daquela pandilha de figurinhas de tinta que nos representam em sua obra.

O fotógrafo saiu e deixou os vestígios do crime. No tecto, prende-se uma nuvem de fumaça leitosa e em todo o gabinete vaga um cheiro seco e ardente que quase nos sufoca. Abro a janela e olho o perfil de Erico. Ele continua viajando e não o interrompo. Conheço-o muito bem sei que será inútil fazer qualquer pergunta no momento. Até sinto vontade de desistir da entrevista.

“Levanto”? Não levanto?”

E me quedo de novo na poltrona. Só, então, me ocorre aproveitar o tempo rememorando o que sei de Erico Verissimo.

FOI ALÉM DOS SEUS DESEJOS...

Olho em tôrno. Livros ingleses, muitos livros ingleses descendo e subindo os armários. Nas paredes, excelentes cópias de um “moço” de Van Gogh e da “Olimpia” de Manet. Depois, Soneto Cósme , um tal de Costa e de novo Van Gogh em pequenas litografias semeadas pelos cantos.

E a primeira coisa que me surge é uma auto-definição que o romancista me deu, certa vez, a propósito de uma pergunta à toa: “No fundo, o que sou é bugre que leu muito os ingleses. O resultado são esses livros que andam por aí...”.

Vem-me ainda, à lembrança, outra vez em que Erico Verissimo disse ter hesitado entre literatura e a pintura. Só se decidiu em 1931, quando já contava 25 anos de idade e Manoelito de Ornelas lhe tinha “arrancado” o primeiro trabalho da gaveta. Entretanto, confessou-me jamais ter sonhado com uma carreira literária como a que fez. Seu único desejo era poder encontrar um editor e algumas dezenas de leitores de boa vontade... e nada mais.

Pouco egoísta, sem dúvida, ele tem tido muito mais do que desejava.

Daquele livrinho de contos “Fantoches”, publicado em 1932, Erico Verissimo passou, em seguida, para “Clarissa”, a novelinha onde já se anunciavam os desígnios de toda a sua obra e onde, pela primeira vez, foi traçado o contorno de um rosto moreno, ornado de cabelos negros repartidos ao meio. A menina Clarissa, um ano mais tarde, iria ser a companheira de outra personagem importante (Vasco, o Gato do Mato) que apareceria em “Musica ao Longe”, o romance que deu a Erico o Prêmio Machado de Assis, instituído pela Companhia Editora Nacional.

Mas a história literária de Erico Verissimo é bastante conhecida. Dentre os que apreciam a moderna literatura brasileira não há quem não a tenha acompanhado passo a passo.  Não há quem, lendo um livro seu, tenha podido fugir à tentação de ler os outros e esperar ansiosamente os que ele promete. Porque Erico Verissimo, ao meu ver, sem deixar de estar integrado ao movimento de renovação por que passou a literatura nacional desde 1930, dirige-se para um horizonte à parte, encaminha-se por uma estrada diferente daquela que segue a maioria dos nossos romancistas.

Sua obra, dentro do espírito universalista que a orienta, obriga-o a um constante restabelecimento, embora se absorvendo completamente na exposição de um único e poderoso tema: os problemas essencialmente humanos. E isto, sem dúvida, tem sido a causa do seu maior sucesso.

Assim, será talvez desnecessário dizer aqui que depois de “Musica ao Longe” ele escreveu “Caminhos Cruzados”, “Um Lugar ao Sol” e finalmente,  esse “Olhai os Lírios do Campo” que lhe valeu a consagração definitiva de público brasileiro.

Mas nunca será demais lembrarmos que a febril atividade literária de Erico, ofereceu-nos, ainda, uma serie de outros livros escritos “nas horas de descanso”, entre um romance publicado e outro a publicar, e que esses livros pesam também na sua bibliografia como obras excelentes de divulgação cientifica e histórica. ““A Vida de Joana D’Arc”, “Viagem à Aurora do Mundo”, “As Aventuras de Tibicuera”, Aventuras no Mundo da Higiene” e mais um punhado de livros infantis que alcançam hoje tiragens fabulosas.

E sobre o homem?            

“SOU UM ANIMAL ESSENCIALMENTE DOMÉSTICO...”

O meu contato frequente com Erico Verissimo, facilita-me uma quase perfeita análise de seus característicos pessoais. Homem calado, um tanto tímido, que se sente mal quando está no meio de muita gente, ele mesmo confessa ser “um animal essencialmente doméstico, que cultiva a paciência e a tolerância”. Acha que o senso de humor nos pode salvar de muita situação irremediável e, apesar de odiar a violência, diz que devemos exercê-la contra a violência, quando necessário.

A súmula do seu programa de vida, conforme me disse certa vez, está encerrada nestas poucas palavras do clássico espanhol Fray Luiz de Leon: “A beleza da vida está em que cada um proceda de acordo com sua natureza e seu oficio.”

Dono de um alto poder de compreensão humana, Erico Verissimo sempre consegue uma explicação para todos os atos humanos. E é por isso, talvez, que ele suporta, por exemplo, um cidadão desconhecido que surge lá do cafundó do mundo para convida-lo a conversarem de literatura. Fica extasiado como se estivesse ouvindo uma declaração de amor. Porêm, não está ali. Anda muito longe, sempre naquele mundo que ele mesmo construiu para si.

EU QUERO UMA ENTREVISTA!

E é aquilo o que mais ou menos está acontecendo comigo, agora.

- Eu quero uma entrevista!

Erico olhe-me com o queixo apoiado na mão. Parece estar preocupado, mas descarrega logo o pensamento com um suspiro resignado:

- A hora é escura. Ninguém sabe o que está para vir. Mas seja o que for, é preciso ter coragem e esperança.

Vejo que ele regressou. Voltou daquele mundo. Andava na guerra certamente com Vasco e outras figurinhas de “Saga”, o romance que está terminando. Não nesta guerra a que se referiu a sua frase, mas na outra, a da Espanha de Franco e Garcia Llorca.

Estou curioso como vocês, leitores, para ouvir Erico Verissimo. E arrisco:

- Você...

- Eu? Não passo dum simples contador de histórias ...

- Não é isto não. Quero que conte alguma coisa sobre o livro “Saga”. Como chegou ao plano do livro?

Os sobrecenhos sobem e descem. O rosto de Erico é uma reticência aflitiva para mim. Finalmente vejo-o tomar um lápis e rabiscar num papel, enquanto começa:

- Vasco estava querendo aparecer... Muitos leitores me escreviam reclamando o reaparecimento do Gato do Mato. Ora, um rapaz como ele não podia por mais tempo refrear o seu desejo de aventura e liberdade... Não era natural que ele fosse lutar na Espanha, na Brigada Internacional? Foi o que aconteceu. Lá se operou a sua reeducação sentimental diante do perigo. A vida se lhe apresentou em sua rude crueza. Vasco viu homens de várias raças e estudou-os nos campos da retaguarda, na trincheira, nas horas de calma, no momento de perigo e, finalmente, num campo de concentração em meio da maior miséria e desolação.

- E ele volta para o Brasil? – Interrogo, ansioso.

- Consegue voltar. Reencontra Clarissa e com ela velhos conhecidos: o dr. Seixas, Fernanda, Noel. Faz novas relações. Encontra-se com dr. Eugênio do “Olhai os Lírios”, além de mais uma boa dezena de outras personagens novas.


Há um globo terrestre sobre um dos armários de livros. Olho-o de baixo e percebo a costa atlântica do Brasil, o oceano e, lá em cima, em direção ao Polo Norte, Portugal e a Espanha. Como o mundo é pequeno!

- Mas você não esteve na guerra da Espanha... Como é, então que pode escrever sobre ela?

Erico solta o lápis, cruza as mãos nos joelhos:

- Eu lhe pergunto: o escritor que estuda a psicologia dum criminoso precisa, necessariamente, ter cometido também um crime? O artista que pinta o retrato duma mulher precisa “ter sido mulher?” “Será que um romancista já “viveu” todas as situações que descreve em seus livros? Claro que não. No caso de “Saga” sirvo-me de dados que foram fornecidos por um ex-combatente da Brigada Internacional. Isso, no que diz respeito à rotina dos combatentes, à organização de milícia, ao “clima”. Os tipos, bem como os episódios principais, são invenção do autor...

- Podemos dizer, então, que se trata duma ficção contra um fundo de realidade?

- Está certo.

- E quanto à técnica?

 - E’ a mais simples e direta possível. O livro todo é narrado por Vasco. Na segunda parte temos oitenta por cento de diálogo. Vamos encontrar Vasco a se mover no meio duma colorida sociedade.

- Pouca paisagem?

- Quase nenhuma... Nada de literatice, quero crer. Vasco reproduz trechos do seu diário – mas apenas aqueles que contribuem para formar o grande painel.

Fico pensando, por segundos, numa lição de Erico sobre um preceito que nenhum ficcionista deve perder de vista: “É preciso um pouco de tudo para fazer um mundo”. Mas há ainda uma pergunta:

- E Vasco encontra o seu rumo?

- Encontra.

- Qual é?

Erico larga o joelho e retoma o lápis.

- Não seja curioso...

- Mas... – insisto, inconformado, - nenhum rumo definitivo?  

- Que é que é definitivo neste mundo?

Calo. Estou desconcertado, e continuaria assim se Erico não voltasse de novo ao “Saga”.

- O que há em “Saga”, principalmente na primeira parte, são tipos humanos a agir e falar em circunstâncias excepcionais; na segunda, tipos humanos a viver a vida normal de uma cidade como a nossa. A minha preocupação não foi descrever a “vida de Pôrto Alegre”, mas apenas dar o tom duma cidade de hoje, com muito de seus aspectos e complicações.

- Em quantas partes se divide o livro? – Pergunto.

- Em três partes e uma quarta que não passa de um capitulo.

- Levam títulos?

- Sim. “O círculo de Giz”, ‘Sórdido Interlúdio”, “o Destino Bate à Porta” e o capitulo que leva o nome de “Pastoral”.

“O destino bate à porta”. A frase fica brincando em meus ouvidos.

A LIBERDADE DE SER E DISCUTIR



Já se tem escrito muito sobre a obra de Erico Verissimo. Pró contra. Muito mais pró do que contra. Porque, afinal de contas, o mundo estaria errado, de acordo com a própria concepção de Erico, se não houvesse discordâncias na alma humana. Sempre é necessária uma pequena dose de bom senso e outra de má vontade, para neutralizar. E é isto que os romancistas chamam “o pitoresco da vida”. Assim como existem os que procuram compreender tudo racionalmente, há os que vêm nos menores incidentes “um caso de polícia” ou “um atentado aos preceitos de qualquer coisa”. E, depois de tudo, todos têm o direito de ver como querem e como entenderem. Eu, por exemplo, não gosto de um dos livros de Erico Verissimo. Não gosto literalmente. Mas nem por isso, vou querer definir a sua obra. Seria pretensão demasiada. Por outro lado, penso agora e concordo com uma frase feliz de Maurício Rosenblatt que definiu paralelamente Vianna Moog e Erico Verissimo: “para Vianna Moog existem principalmente os problemas políticos e sociais: para Verissimo os morais e psicológicos”. Faço, pois, a pergunta com um ar de quem descobriu a América:

- De sorte que para você o importante é a paisagem humana...

- Claro. O homem e seus problemas, desejos, sonhos, esperanças, angústias, alegrias. Esse grande e continuo tumulto que se chama vida.

- E quanto à orientação espiritual das personagens?

- Elas têm toda a liberdade. Eu não as escravizo. Há no livro católicos, ateus, protestantes, céticos, cínicos... enfim, eles são o que são e no romance há a liberdade de ser e discutir.

OS LIVROS CAEM DE MADUROS

Observo agora que Erico encheu uma folha de papel com palavras e figurinhas, enquanto falava comigo. Sei que ele desenha. Folheando os álbuns da “Revista do Globo”, tenho encontrado muitas ilustrações de contos feitas por ele, quando era seu diretor. Bom desenhista? Interessante. Mas os calungas da folha de papel são notáveis. Há um que parece estar pulando. Vive, por certo. E a minha curiosidade obriga-me a perguntar, para não deixar que Erico fuja para o mundo novo.

- Você desenha, não é?

- Sim. Desenho estes calungas e faço com eles esquemas de situações. Não que isto seja indispensável, mas é que a coisa me diverte, e, para mim, a melhor maneira de pensar é rabiscando caretas num papel.

- Ahh!... E como é que planeja um livro?

- Parto de uma ideia, como no caso dos “Lírios do Campo” e depois escolho as personagens e os episódios. Ou, então, parto da personagem, como no caso de “Clarissa”. Em “Musica ao Longe”, temos uma ideia – a decadência duma família local e a ascensão de um emigrante – e o aproveitamento de uma personagem anterior – Clarissa.

- E o enredo?                            

- E simples. Eu não penso com palavras, mas com fatos. Passo a viver interiormente com as personagens: vejo-as a se moverem, falando, sentindo. E o livro me vai amadurecendo no espírito, até o dia em que cai de maduro. E cai no papel.

O MUNDO DEIXA DE EXISTIR

Nestes últimos dias, muitas vezes surpreendi Erico Verissimo a escrever “Saga”. Sob a luz de um “abat-jour”, acomodado na poltrona, com a máquina sobre os joelhos e alguns papéis em torno, pelo chão, ele datilografa metralhando em pequenas folhas de papel (½ folha almasso).

Não escreve capítulos salteados, pois certamente, acha que o homem é um feixe de memórias e o que uma personagem faz ou diz no capitulo 12, por exemplo, é de certo modo uma consequência de coisas acontecidas nos capítulos anteriores. Por isso, escreve o livro na ordem direta, de preferência.

Seus dois filhos, Clarissa e Luiz Fernando, que não sabem o que é o silêncio, quase sempre fazem questão de brincar no gabinete. Mas nada interrompe Erico Verissimo. O mundo em volta dele deixa de existir e ele fica completamente integrado no ambiente do livro. E quem pensar que Erico utiliza algum fichário, ou consulta enciclopédias, se engana. Porque só depois de todo o livro escrito é que faz as emendas à mão e com tinta verde. A cor da tinta, disse-me ele, influi muito nestas emendas.

O FINAL DA FESTA

Um bocejo. Dois bocejos. A entrevista está dando sono. Erico se levanta e vai a janela. Eu também vou. Olho para baixo e vejo o chão a quarenta metros. Longe, o Alto da Bronze, o Guaíba, um morro, nuvens. O sobrecenho de Erico está de novo fazendo curvas na testa.

- Algum plano? Outro livro em preparo?

- Nada disso. Não se sabe o que está para vir. A hora é incerta. E se “Saga” não fosse uma história em torno destas inquietações de hoje, eu nem teria escrito agora. Vou me atirar na leitura de bons livros, ouvir música e esperar... Desejo que volte a paz ao mundo. Tenho esperança na América e no Brasil. Acredito no socialismo, num estado descente, justo em que cada homem possa adorar o seu Deus e viver a sua vida de acordo com seus ideais.

Diante de tanta frase bonita e de tão bela profissão de fé, Luiz Fernando põe fim à festa jogando uma bolinha de vidro do armário. Plim!






23 de dez. de 2020

Conto natalino do escritor Erico Verissimo publicado em 1939 na revista O Cruzeiro

O texto foi redescoberto pelo jornalista e pesquisador Vilmar Ledesma. 

O conto passeia pelos bairros de uma Porto Alegre de cadeiras na calçada e bares alemães.

Em dezembro de 1939, uma edição especial de Natal da revista O Cruzeiro, trazia, nas páginas 34, 35 e 36, um misto de conto/crônica de Natal assinado por Erico Verissimo. A narrativa passeia por vários bairros da Porto Alegre de 1939, flagrando diferenças sociais e étnicas da cidade ao retratar como tipos característicos de cada vizinhança encaram a noite de Natal. É o retrato de uma Porto Alegre ainda muito germânica, algo que a II Guerra, que naquele ano já havia eclodido na Europa, mudaria muito.

Video no youtube Porto Alegre de Erico Verissimo


NOITE DE NATAL EM PORTO ALEGRE

POR ERICO VERISSIMO

As estrelas caíram no Guaíba.  Piscam luzes nas ilhas escuras.  O motor duma lancha bate surdo e alto como um enorme coração medroso.  Junto do cais há uma floresta desgalhada de mastros.  A água marulha, mole, bate no costado dos barcos adormecidos.  Na proa de um  navio alemão que veio de Hamburgo recorta-se o vulto dum homem.  Dou uma estrela pelos seus pensamentos:  talvez ganhe, em troca, um lindo poema.  Dou duas estrelas... três estrelas... todo o céu... Olhe que vou bater... Todo o céu, meu romântico marinheiro, inclusive a lua, as nuvens e os querubins... O homem continua imóvel.  Nada feito.  Sigo adiante, passo pelos guindastes que não têm Natal.  Paro para contemplar um veleiro, vejo luzes lá dentro, ouço vozes, o som duma cordeona.  Depois é uma barcaça de carão, uma draga, de novo um navio mercante.  Um caíque se aventura rio em fora, um vulto rema sereno, a noite é tão silenciosa ali no cais que julgo ouvir a suave batida dos remos ferindo a água.  Decerto aquele homem vai pescar estrelas.  É preciso uma grande rede para pescar estrelas.  (Quando é que a gente se livra do fantasma do Tagoro?)  Jogo o meu cigarro no rio, desejo-lhe um “Feliz Natal!” e sigo para a cidade.

DIÁLOGO

- No Norte, o Natal é diferente... – dizia meu amigo pernambucano.

- Este entusiasmo pelo Natal – expliquei – este costume de enfeitar pinheirinhos e fazer que o Papai Noel apareça na véspera de Natal, nos foram trazidos pelos imigrantes alemães.  Ensinaram-nos também muitas outras coisas.  Algumas boas, outras más...

- É curioso.  A filha do dono de minha pensão dá a Papai Noel um nome esquisito.

- Pelznickel... Era assim que muitas das crianças de meu tempo lhe chamavam... Christkindchen é o Menino Jesus... e não eram só as c rianças de sangue alemão que conheciam  e usavam esses nomes...

Pausa.  Continuamos a andar.  Aproximamo-nos da rua dos Andradas.  Mergulhamos no clarão dos combustores e dos letreiros luminosos.  A rua está negra de gente.  Dos cafés vem o clamor de vozes, risadas, música...

Meu companheiro para debaixo de um grande anúncio a gás neon.  Por um instante seu rosto fica purpúreo, e eu penso no conto de Poe A Máscara da Morte Vermelha...

BAR ALEMÃO

Em cima do balcão de mármore, perto da máquina registradora, ergue-se uma minúscula árvore de Natal.  As velas coloridas estão acesas, e os penduricalhos lampejam, refletindo as luzes da sala.

As mesas acham-se quase todas ocupadas.  Sentamo-nos perto do aquário.  Um dos peixinhos japoneses encosta o focinho no vidro, à altura de minha cabeça, e fica me olhando.

- São conhecidos? – indaga o meu companheiro.

- Ah... conhecemo-nos de cumprimento.

Um garçom se aproxima.  Pedimos chopes.

Uma vitrola arremessa para o salão os compassos duma valsa de Strauss.  Aceitamo-la como se aceitam as coisas inevitáveis.

Olha em torno.  Talvez sejamos os únicos brasileiros puros (puros?) no bar.  Só vejo epidermes claras, algumas caras apopléticas, cabeleiras que vão desde o castanho bronzeado e chegam, via-ruivo e cor-de-palha, até o louro de platina.  Um minuto de silêncio em homenagem a Jean Harlow.

- Prosit! – diz meu companheiro.

- Prosit – respondo.  E, depois do primeiro gole, ainda com um  bigode de espuma, acrescento – Qual!  O de que nós dois precisamos é de uma bela nacionalização...

As conversas crescem, sobem como ondas quentes.  Faz calor.  Um senhor gordo passa o lenço pela nuca vermelha, lustrosa e pregueada.  Uma vasta senhora ciclópica abana-se com um leque, bate com ele nos seios fartos que decerto já amamentaram algum Siegfried.

As paredes do bar estão eriçadas de pontas de cervo.  Viva a falta de malícia germânica!

Os peixes nadam por entre algas.  Faz de conta que elas são as suas árvores-de-natal.  Mas... nada de sentimentalismos em torno de peixes.

Strauss retirou-se de cena.  Agora saem da vitrola os acordes duma doce melodia conhecida.  Há como que um vácuo na sala:  um súbito buraco de silêncio se abre.  E de repente, sem o comando dum maestro, todos começam a cantar “Sttile Nacht, Heilige Nacht...”  Parece que se sentem felizes.  Mas duma felicidade triste.  Lembram-se decerto de Vaterland.  E no entanto muitos deles são apenas netos de alemães, nunca viram a Alemanha a não ser em cartões-postais.

Raça... uma grande coisa, amigo!  Mas que perigo!  Pegamos o chope e saímos.

COMISSÃO JULGADORA

Concurso de árvores de natal instituído por uma grande empresa.  Lá vai serenamente dentro dum Lassale a comissão julgadora.  Poetas, jornalistas, pintores, escultores e um senhor do comércio local.  Visitam as casas que se inscreveram no concurso.  São recebidos com amabilidades, doces e bebidas.  Na primeira casa, tudo ótimo.  Uma linda árvore.  Crianças adoráveis.  Um casal muito simpático.  Passam para a segunda casa.  A mesma cena.  Mais bebidas.  Já o mundo, para a comissão julgadora, passa a ser um estranho lugar cheio de alegrias fumegantes, de gente adorável e da mais absoluta e excitante alegria.  Terceira casa.  “Agora queremos oferecer aos senhores alguma coisinha para beber...”.  Ótima ideia.  E lá se vai a comissão julgadora.  Quarta casa.  O presidente da comissão entra na sala, olha a árvore de Natal e depois chama o secretário para um canto e, com voz arrastada e grossa, lhe pergunta:

- Senhor secretário... não acha... não acha... que é um esbanjamento inútil... fazerem... du... duas árvores de Natal?

O secretário, que já não pode com o peso das pálpebras, fixa o olhar no pinheiro enfeitado e protesta:

- Perdão, Senhor presidente... Duas não... Três!

NA FLORESTA

Passamos por uma casa de janelas iluminadas.  Relanceio os olhos para dentro da sala.  Basta aquela visão rápida para eu recompor depois mentalmente a cena.  O dono da casa deve se chamar Shultz ou Schmidt.  Trabalha numa firma alemã da Rua Sete.  Tem três filhos:  Willy, Karl e Trude.  Estão esperando o Pelznickel...  A árvore de Natal vem exercen do suas funções regularmente há seis anos, desde que Willy nasceu.  Frau Schultz ou Schmidt fez uma linda cuca.  Há dois barris de chope na área.  Os rapazes da firma vão aparecer.  “Que farra!” – antegoza o senhor Schultz ou Schmidt.  Cantarão abraçados canções engraçadas.  Pelznickel vai trazer uma boneca para trude, soldadinhos nazistas para Karl e um avião de bombardeio para Willy.

NA RUA DUQUE

É uma casa alta e antiga, com azulejos.  Família tradicional.  Grande árvore de Natal na varanda.

O dono da casa é médico.  Tem quatro filhos.  Os dois primeiros acreditam em Papai Noel, os outros dois não.

O rádio enche a casa de música.  Vozes alegres se escapam pelas janelas escancaradas.

Dona M aria vai buscar os gelados no refrigerador.  Na grande mesa alinham-se pratos com sanduíches, nozes, avelãs, castanhas e passas.  Ouve-se o estouro de uma garrafa de champanhe que se abre.

Não há canções tradicionais.

O senhor nacionalista conversa com um tenente do exército:

- Pois é.  Precisamos acabar com esses estrangeirismos.  Nada de Papá Noel ou de Pelznickel.  Vovô Índio... É... Vovô Índio.  Que diabo!  Temos neve?  Temos pinheiro?  Isso é coisa para a Europa.

- A América para os americanos – obtemperou o oficial.

O senhor nacionalista fica um instante pensativo e depois continua:

- E  porque não promovemos o nosso Negrinho do Pastoreio a papai Noel?  Ficava admirável.  Em vez de pinheiro, um umbu... ou outra árvore menor...  Bastava acender uma vela para o Negrinho e ficar a pedir um presente...

Ficou sorrindo não para o tenente mas para a própria ideia.

CIDADE BAIXA

Aqui nessa zona de casas melancólicas, pequenas e velhas começou a cidade.  Olho discretamente para dentro de uma casa de porta e janela e vejo uma árvore de Natal solitária no centro da pequena sala.  Luz amarelada a alumiar meia dúzia de caras tristes.  Casa decerto de um modesto funcionário público que não foi contemplado no reajustamento.  Ele, a mulher, a filha solteirona, a filha noiva ao lado do eterno noivo (que decerto também não foi contemplado em coisa nenhuma nesta vida).  Estão tristes e graves, parece que a árvore de Natal é uma criança morta e eles estão ali em silêncio, velando o anjinho...

NOS NAVEGANTES

Para as famílias que moram nas velhas barcaças encalhadas na praia do Navegantes não há Natal.

NOS MOINHOS DE VENTOS

Palacete dum industrialista alemão que ficou rico com a guerra (a primeira).  Grande parque com palmeiras, pinheiros e outras árvores que a escuridão e a falta de conhecimento de botânica me impedem de classificar.

Janelas fechadas.  A fraulein que cuida da casa saiu com o namorado, um mecânico ruivo e atlético.  Decerto a esta hora estão bebendo num bar qualquer.

Os donos da casa foram passar o Natal na Alemanha.

NO BONFIM

O Bonfim é o “ghetto”.  Lojas, cafés, dois cinemas, judeus velhos sentados nas frentes das casas, barrete negro na cabeça, barbas longas grisalhas ou completamente brancas.  Mocinhos e Mocinhas a passear nas calçadas.  O Centro Social Israelita.  Salões de bilhar.  Aqui e ali uma casa de família brasileira.

Para esta gente Cristo ainda não nasceu.

Mas aquela meninazinha que ali está na calçada, de dedo na boca, e que se chama Lea, deita olhares compridos de inveja para a árvore de Natal que cintila na casinha da família brasileira.

COLÔNIA AFRICANA*

Uma zona em que as fronteiras do “ghetto” e da Colônia Africana se misturam.  Começamos a ver negros e negras endomingados para festejar o Natal.  Alguns deles foram ao “cabelizador” alisar a carapinha, muitos botaram na cabeça, no lenço, na lapela uma loção que tem um cheiro que lembra o doce de batatas.

A rua é de terra batida cor de rosa.  A casa, de tábua.  A família é grande e há muitos convidados.  A maioria deles se acha no terreiro, debaixo das árvores.  Um mulato cabelizado toca um violão.  Um preto começa a tocar um samba.  O refresco corre a rosa (framboesa, naturalmente).

Na sala de visitas há um presépio encardido.  E também um pequeníssimo e esmirrado pinheirinho cheio de curiosos enfeites: vidros de iodo vazios, lâmpadas elétricas queimadas, colares de contas coloridas, vidrilhos e flores de papel de seda.

Tudo indica que a festa vai acabar em macumba.

DÚVIDA

Nas ruas alguns homens se abraçam e quase todos parecem alegres.  Desejam-se bom Natal e muitos aproveitam o pretexto para tomar tremendas bebedeiras.

- Eu só queria saber uma coisa...

- Que é? – indagou o companheiro.

- É se essa gente realmente se lembra que hoje se festeja o nascimento de Jesus...

O amigo parou, franziu a testa numa careta de estranheza e exclama:

- Mas é mesmo, rapaz!  E eu que nem me lembrava disso!?

NOTA SENTIMENTAL

O Natal do poeta solitário que não tem família nem esperança e que anda pelas ruas como cachorro sem dono a olhar para as estrelas?

Oh!  Não... Mil vezes não!


Revista O Cruzeiro, 23 de dezembro de 1939

 

  • A região em que se localizava a Colônia Africana é o hoje bairro Rio Branco (nota do editor).


Fonte:  ZeroHora/Caderno PrOA em 19/12/2015

 

 

23 de set. de 2020

Pronunciamento do Deputado Estadual Ruy Carlos Ostermann, autor do projeto de lei nº23/83, que deu nome à Casa de Cultura Mario Quintana ao ex-Majestic Hotel.

 Dia 28 de junho de 1983 na Assembleia Legislativa.


"Sr. Presidente, Srs. Deputados:


Nesta casa se presta, neste momento, a homenagem talvez estranha mas indispensável à poesia.

Em tempo de extrema dificuldade para a articulação até mesmo das frases, em tempo de extrema penúria para o conteúdo das frases, em tempo de silêncios, em tempo em que a palavra não se ouve e ela se cala, me parece que lembrar que um prédio, da mais bonita e saudosa arquitetura de Porto Alegre, o ex-majestic Hotel, seja agora transformado em Casa de Cultura e que por iniciativa de um Projeto de Lei desta Casa possa esta Casa de Cultura denominar-se 'Mario Quintana', eu penso que se está, sob muitas formas, agradecendo, retribuindo, devolvendo de algum modo a alegria, a justeza da frase, a capacidade de embevecimento e, sem dúvida, os valores morais, estéticos e de humanidade de um Poeta.

Esta Casa tem se caracterizado pela defesa intransigente de fatos imediatos, dolorosos, cruéis e contundentes. Poucas vezes ela pôde, no entanto, demorar-se numa atitude, talvez, até surpreendente, para abrigar, na generosidade, a um Poeta e designar-lhe então um lugar na cidade, na cidade que ele sempre amou, que ele soube amar nos seus desvios, nas suas esquinas, que ele soube, sobretudo, amar na sua paisagem humana.

Este homem que solidariamente, durante algum tempo, justificou quase que a preservação do ex-Majestic Hotel, esse homem que transitava solitário por aqueles arredores e que lá, certamente escreveu algumas das páginas, alguns dos versos que hão de ficar na memória, na sensibilidade brasileira, está a merecer hoje, nesta Casa - e estou fazendo o encaminhamento da votação - um gesto que eu entendo que é de todos nós, pela forma unânime com que foi acolhido pelos pareceres favoráveis que recebeu, nós estamos finalmente dando de volta, não com a generosidade e nem com a grandeza do Poeta, mas com, enfim, a nossa possibilidade politica, estamos dando de volta alguma coisa desta ampla, indiscutível, admirável, contínua doação ás pessoas, que é a poesia de Mario Quintana.

Penso que assim se faz uma pequena justificativa e com isso se justifica o Projeto, que ora encaminhamos".

A cerimônia de votação, apresentação, pareceres, discursos e leituras foi assistida por grande número de pessoas e, principalmente, por Mario Quintana. Após a aprovação, ovacionada por todos, o Poeta subiu à tribuna para um breve e emocionado pronunciamento que a todos comoveu:

“Aqui estão todas as correntes reunidas em torno da poesia, e é em nome da poesia que agradeço aos senhores”.

 

·        KOSLOWSKY SILVA, Liana. Majestic Hotel – Memórias de um Monumento, v46, p114-115 - 1992


A Livraria do Globo da Rua da Praia

  A escultura de ferro no topo do prédio da Rua dos Andradas (Rua da Praia), talvez continue despercebida devido à pressa dos dias de hoje. ...