O escritor Erico Verissimo e sua esposa, Mafalda, passaram a lua-de-mel no Majestic Hotel, vindos de Cruz Alta, em 1931.
4 de fev. de 2022
vídeo - Erico Verissimo e sua esposa Mafalda visitam o amigo Mario Quintana no Hotel Majestic
O escritor Erico Verissimo e sua esposa, Mafalda, passaram a lua-de-mel no Majestic Hotel, vindos de Cruz Alta, em 1931.

10 de jan. de 2022
vídeo - Artista Plástico Freddy Sorribas faz homenagem a Erico Verissimo em 1993
Anualmente a Biblioteca Erico Verissimo mantinha atividades voltadas para a divulgação das obras de seu patrono. Naquele ano de 1993, foram organizadas programações durante a semana como forma de dar destaque a sua obra literária. Uma delas foi à execução de uma obra pictórica relativa à literatura de Erico Verissimo. Essa obra foi executada nos dias 17 e 18 de dezembro, no espaço interno da Biblioteca, onde ficou exposta até o ano de 2020.

5 de nov. de 2021
Casa de Cultura Mario Quintana - março de 1991- Projeto Original
APRESENTAÇÃO
A Casa de Cultura Mario Quintana foi pensada e planejada para a realidade cultural do Rio Grande do Sul. Deve, portanto, ter a clara consciência de estar situada num país de terceiro mundo, com suas limitações e carências, e saber tirar proveito deste fato: se faltam meios, há tempo e espaços disponíveis e cabe a nós preencher este tempo e ocupar os espaços.
Deve repensar sua latinidade sem traumas, de forma positiva.
Deve buscar o contemporâneo, sem esquecer as raízes e as etnias que contribuíram para a sua formação.
Deve ser ágil, dinâmica, criativa, inquisidora, crítica, buscando o acerto mesmo através do erro; adolescente e não senhoril. E deve, principalmente, ousar, e ousar muito, pois somente aos que têm ousadia é dado acordar no futuro.
Sergio Napp Diretor da CCMQ
HISTÓRICO
Início do século XX. A modernidade estava presente em todas as correntes do pensamento humano. A era moderna, iniciada no final do século passado, trazia a ciência e a tecnologia a serviço do homem. Os automóveis, os aviões, o telefone e os grandes movimentos culturais transformavam o perfil das capitais.
Em meio a esta agitação cultural, nascia na Porto Alegre província um projeto audacioso. O arquiteto alemão Theo Wiederspahn, contratado por Horácio de Carvalho, surpreendia a todos ao projetar em estilo neoclássico, dois prédios interligados por passarelas, que cruzavam por cima de uma via pública e tinha em seu topo duas cúpulas. Em 1923, os irmãos Masgrau, arrendatários do prédio, inaugurariam ali o Hotel Majestic.
As características diferenciadas do prédio e o atendimento dos arrendatários dariam popularidade ao local. No hotel desfilavam artistas, intelectuais e personalidades, como os ex-presidentes Getúlio Vargas, João Goulart, o escritor Erico Veríssimo e os cantores João Gilberto, Dalva de Oliveira, entre muitos outros.
O tempo foi passando, a cidade romântica do início do século foi crescendo, dando lugar aos grandes e frios espigões, a violência e a poluição. Surgia a decadência e a desumanização de que padecem as áreas centrais de todas as grandes cidades.
O grande Hotel Majestic não escapou a esta realidade. Entrava na década de setenta longe de seu esplendor, deixando de ser um hotel tradicional, para abrigar, basicamente, moradores permanentes.
Um de seus mais ilustres moradores foi Mario Quintana. O poeta ali viveu de 1968 até 1980, quando o prédio foi fechado definitivamente como hotel.
Sem brilho, desgastada e consumidas pelo tempo, a bela edificação estava ruindo. Eram os vazamentos e pinturas descascando e rebocos caindo. Mesmo assim, a obra projetada no início do século, ainda chamava atenção pela importância arquitetônica e histórica. Precisava ser preservada e recuperada.
Em 1980, o Governo do Estado, através do Banco do Estado do Rio Grande do Sul, adquire o prédio. Evita-se assim, uma provável demolição para dar lugar a outro espigão. Já se pensava nesta época em instalar um centro de cultura no prédio do antigo Majestic. Começaria uma nova etapa para o surpreendente edifício que havia funcionado como hotel por 57 anos. Permanecendo desativado por mais de dois anos, em março de 1983 um espaço de exposições é inaugurado no térreo, sendo o prédio reaberto na tentativa de instalar o centro de cultura. No mês de julho do mesmo ano, um projeto aprovado na Assembleia Legislativa denomina o novo espaço cultural de Casa de Cultura Mario Quintana, homenageando o grande poeta e antigo morador do então Hotel Majestic. Dois anos mais tarde, o prédio seria tombado pelo patrimônio Histórico e Artístico do Estado.
A partir de sua abertura como Casa de Cultura, e por seis anos o prédio funcionaria precariamente. A primeira administração esteve a cargo da professora bibliotecária Ivette Zietlon Duro, substituída em 1984, pela artista plástica Iara Gay Castro e posteriormente, em 1986 pela especialista em educação, Maria Gercira de Moura Diniz. Devido à falta de condições do edifício era possível utilizar tão somente o térreo e o primeiro andar.
O Hotel Majestic para abrigar a sonhada Casa de Cultura pedia restaurações urgentes. Constatada, a total impossibilidade para desenvolver qualquer trabalho naquelas condições, iniciou uma verdadeira luta na busca de recursos no sentido de recuperação e reciclagem da edificação. Conforme algumas ideias, das administrações estaduais anteriores, a obra poderia levar até trinta anos para ser concluída. Porém, durante a administração Simon-Guazzelli, em 1987, sob a direção do engenheiro e artista Sérgio Napp, um projeto do que deveria ser uma Casa de Cultura começou a ser estudado junto com a sua recuperação. O prédio viabilizava a ocupação de seus espaços internos para as mais variadas atividades. Em julho, deste mesmo ano, o estudo preliminar foi apresentado ao público e as instituições culturais para ampliar as discussões sobre o futuro da obra. Em março de 1989, o anteprojeto de autoria dos arquitetos Joel Gorski e Flávio Kiefer, foi concluído. O projeto dotaria o prédio de uma total integração em todas as áreas internas, onde se desenvolveriam as atividades culturais. Num trabalho inovador, em termos culturais e arquitetônicos a futura Casa de Cultura Mario Quintana permitiria um contato visual de todos os trabalhos presentes em seu interior. O novo lado a lado, com o antigo.
PROJETO
O projeto previu ainda a necessária infraestrutura moderna para o seu perfeito funcionamento. Iluminação, prevenção contra incêndios, ar condicionado, computador, antena parabólica e outros itens que fariam da Casa de Cultura Mário Quintana das mais completas da América Latina. Em julho de 1989, foi assinado o contrato entre o Estado e a empresa que viria realizar a obra. A Casa foi fechada para dar lugar ao canteiro de obras.
A postagem apresentou a introdução do folheto original.
O folheto completo está disponível para consulta local na Biblioteca Erico Verissimo.

1 de out. de 2021
'A Hora do Sétimo Anjo' (fragmento)
segundo caderno, sexta-feira, 4 de fevereiro de 1994
Erico Verissimo deixou inacabado, manuscrito em inglês, o projeto de um novo romance.
Zero Hora reproduz as quatro únicas laudas da versão definitiva legadas pelo autor
Envolvido com suas
memórias, Erico Verissimo acabou adiando o projeto do romance A Hora do Sétimo
Anjo. Quando morreu, em 1975, deixou quase 400 laudas, manuscritas em inglês,
em que sucessivas camadas coloridas de hidro cor denunciam esboços retomados, revisados,
acalentados. Para comemorar o número 10 da revista Brasil/Brazil, uma
publicação semestral dedicada à literatura brasileira coeditada pela PUC-RS e
Brown University, dos Estados Unidos, a coordenadora do Acervo Literário de
Erico Verissimo e editora associada da revista, Maria da Glória Bordini,
organizou o primeiro trecho dos originais (cerca de 30 laudas). "Erico
tinha o hábito de escrever em inglês desde O Tempo e o Vento. Dizia que era
muito mais fácil assim: não tinha que se preocupar em prestar contas à
língua", conta Maria da Glória. Nesta página, o primeiro trecho deixado
por Erico na versão final.
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O anjo inacabado Erico Verissimo deixou quase 400 laudas manuscritas em inglês daquele que deveria ser o último romance do Ciclo de Porto Alegre |
"Eram cerca de quatro horas da tarde quando o Dr. Caio Mafra-Pomar entrou na pequena sala de trabalho de Frei Pio, no convento de Santo Antônio. O irmão leigo que o conduzira até ali retirara-se em silêncio, fechando a porta sem ruído. O monge estava de pé junto à janela, imóvel e meio irreal, como se fosse a sua própria estátua num museu de cera. Era um homem alto, encurvado e de aspecto frágil, a pele duma lividez cadavérica. Vestia o hábito pardo da sua ordem e estava de cabeça baixa, os olhos cerrados, os braços cruzados contra o peito.
Caio contemplava a visão, perturbado. Aquele pobre capuchinho devia estar seriamente enfermo. Arrependeu-se de ter vindo. Pensou até em ir-se embora na ponta dos pés. Deixaria um cartão com explicações... Mas naquele momento Frei Pio abriu os olhos, voltou a cabeça e exclamou, Ah! E os dois homens caminharam um para o outro, apertaram-se as mãos. Nunca se tinham visto antes. Padre, perdoe-me por ter vindo perturbar a sua paz.
Mas não, meu caro doutor! Eu esperava a sua visita com
grande alegria. Por favor, sente-se. Vou ficar de pé por en quanto. Passei boa
parte da tarde deitado, estou com o corpo um tanto entorpecido.
Caio sentou-se. A luz em cheio na face de Frei Pio. Em que
museu do mundo e de tempo vira ele um frade como aquele? Bosch? El Greco? O capuchinho
tinha uma face descarnada e triangular, de malares salientes. Seus cabelos,
como a barba pontuda e rala, eram dum louro meio esverdeado e estriado de fios
brancos e fulvos. No fundo de órbitas ossudas, seus olhos pareciam duas esferas
de mercúrio e tinham uma fria neutralidade metálica.
- O senhor deve ter estranhado o meu telefonema... sorriu
Caio. Hesitei muito antes de lhe pedir esta entrevista.
- Ora, por quê?
Quero desde o primeiro momento ser absolutamente sincero com
o senhor. Sou um homem orgulhoso. Não me foi fácil vir aqui com... com o
propósito que me traz. Não está sendo fácil.
Tirou do bolso o lenço para enxugar o suor do rosto. O padre
olhava vago para a janela. Caio prosseguiu:
- Nem sei por onde começar...
- Então não comece. Vamos conversar sobre outros assuntos,
como num encontro casual. Quando menos esperamos, deslizaremos para o âmago
do seu problema. Faz um pouco de calor, hein? É o vosso famoso veranico de
maio. Fique à vontade, doutor.
- Não quer tirar o casaco?
- Não, padre, muito obrigado. Tenho um amigo de mocidade que
costuma dizer que sou o homem mais formal do mundo. A verdade é que eu não me
sentiria muito bem em mangas de camisa. Não é mesmo uma tolice? Outra
confissão, Frei Pio: sou um homem extremamente vaidoso. Veja, esta é a primeira
vez que reconheço isso em voz alta na frente de outra pessoa.
- Se o que vou dizer serve de consolo, asseguro-lhe que nem
nós, os sacerdotes, estamos livres da vaidade. E há tantos tipos de vaidade!
- Sou um homem exageradamente consciente e cioso de seu status
social.
- Santo Deus! O senhor deve ter uma presença catalítica. É
incrível, não estou achando nada difícil fazer-lhe essas confidências.
- Estimo ouvir isso. Embora não estejamos numa confissão, o
senhor pode ficar certo de que considerei segredo confessional tudo, mas tudo
que o senhor me disser.
- Não tenho a menor dúvida quanto a isso.
‘Pairava sobre o perfil dos edifícios uma névoa seca. Vinha de fora um cheiro de ramos de jacarandá queimados'
E de súbito se fez um silêncio. Caio cruzou as pernas, tendo
o cuidado de não amassar as calças de alpaca inglesa azul-marinho. Olhou em
torno. Havia na sala poucos móveis: uma mesa comum com papéis em cima, uma
prateleira com uns poucos livros e duas ou três cadeiras de pau.
Caio levantou-se e ambos ficaram olhando para fora. Pairava
sobre o perfil dos edifícios da cidade uma névoa seca ruço-rosada. Vinha de
fora um cheiro de ramos de jacarandá queimados.
- É uma estação triste – murmurou Caio. – Posso fumar?
- Mas claro.
Caio acendeu um cigarro.
- O outono sempre me dá espécie de torpor de febre... que
não é de todo desagradável. É uma estação que tem quatro... ou cinco dimensões,
compreende? Eu a sinto assim.
- Antes do senhor chegar - disse o monge, - estive olhando
esse céu incomparável, apreciando a qualidade dessa luz. Sabe duma coisa? Eu
gostaria de escrever poemas... Ou pintar. Ou compor música. Mas infelizmente
não tenho nenhum talento...
Não acredito, padre. Contaram-me maravilhas do senhor.
Possivelmente gente que não me
conhece direito. - O senhor talvez não saiba, mas está se
tornando uma espécie de legenda na cidade.
O monge voltou a cabeça para ele:
Está falando sério?
Claro que sim.
Mas por quê? Talvez por causa daquela tola reportagem que
um dos jornais locais publicou sem o meu consentimento. Sobrevivente dum campo
de concentração nazista vive num convento em Porto Alegre.
- Não é só isso, padre. O senhor já está, como diria um de
nossos clássicos portugueses, em "odor de santidade".
- Eu, um santo? Que Deus nos livre desse boato! Com santos
de meu calibre, a Igreja estaria perdida. Imagine se depois da minha morte
começarem a aparecer retratos meus nos jornais com o meu nome e uma legenda:
"A Frei Pio, por uma graça concedida". Acho que as autoridades
eclesiásticas não deviam permitir coisas como essas.
Novo silêncio."

26 de ago. de 2021
Escreve Justino Martins O Destino Bate à Porta Uma entrevista com Erico Verissimo A história de “Saga” A Experiência de um Romancista
![]() |
O burro é a "mascote" de Erico Verissimo e, portanto, tinha que aparecer na fotografia. "Assim seremos três, disse Erico". |
E, agora, mergulhado no fundo de uma poltrona contemplo Erico Verissimo à minha frente, numa atitude introspectiva, o sobrecenho esquerdo fazendo curvas na testa, o olhar perdido numa distância incomensurável, bem como eu tenho encontrado tantas vezes. Certamente ele anda pelo mundo, um mundo muito seu, acompanhado daquela pandilha de figurinhas de tinta que nos representam em sua obra.
O fotógrafo saiu e deixou os vestígios do crime. No tecto, prende-se uma nuvem de fumaça leitosa e em todo o gabinete vaga um cheiro seco e ardente que quase nos sufoca. Abro a janela e olho o perfil de Erico. Ele continua viajando e não o interrompo. Conheço-o muito bem sei que será inútil fazer qualquer pergunta no momento. Até sinto vontade de desistir da entrevista.
“Levanto”? Não levanto?”
E me quedo de novo na poltrona. Só, então, me ocorre aproveitar o tempo rememorando o que sei de Erico Verissimo.
FOI ALÉM DOS SEUS DESEJOS...
Olho em tôrno. Livros ingleses, muitos livros ingleses descendo e subindo os armários. Nas paredes, excelentes cópias de um “moço” de Van Gogh e da “Olimpia” de Manet. Depois, Soneto Cósme , um tal de Costa e de novo Van Gogh em pequenas litografias semeadas pelos cantos.
E a primeira coisa que me surge é uma auto-definição que o romancista me deu, certa vez, a propósito de uma pergunta à toa: “No fundo, o que sou é bugre que leu muito os ingleses. O resultado são esses livros que andam por aí...”.
Vem-me ainda, à lembrança, outra vez em que Erico Verissimo disse ter hesitado entre literatura e a pintura. Só se decidiu em 1931, quando já contava 25 anos de idade e Manoelito de Ornelas lhe tinha “arrancado” o primeiro trabalho da gaveta. Entretanto, confessou-me jamais ter sonhado com uma carreira literária como a que fez. Seu único desejo era poder encontrar um editor e algumas dezenas de leitores de boa vontade... e nada mais.
Pouco egoísta, sem dúvida, ele tem tido muito mais do que desejava.
Daquele livrinho de contos “Fantoches”, publicado em 1932, Erico Verissimo passou, em seguida, para “Clarissa”, a novelinha onde já se anunciavam os desígnios de toda a sua obra e onde, pela primeira vez, foi traçado o contorno de um rosto moreno, ornado de cabelos negros repartidos ao meio. A menina Clarissa, um ano mais tarde, iria ser a companheira de outra personagem importante (Vasco, o Gato do Mato) que apareceria em “Musica ao Longe”, o romance que deu a Erico o Prêmio Machado de Assis, instituído pela Companhia Editora Nacional.
Mas a história literária de Erico Verissimo é bastante conhecida. Dentre os que apreciam a moderna literatura brasileira não há quem não a tenha acompanhado passo a passo. Não há quem, lendo um livro seu, tenha podido fugir à tentação de ler os outros e esperar ansiosamente os que ele promete. Porque Erico Verissimo, ao meu ver, sem deixar de estar integrado ao movimento de renovação por que passou a literatura nacional desde 1930, dirige-se para um horizonte à parte, encaminha-se por uma estrada diferente daquela que segue a maioria dos nossos romancistas.
Sua obra, dentro do espírito universalista que a orienta, obriga-o a um constante restabelecimento, embora se absorvendo completamente na exposição de um único e poderoso tema: os problemas essencialmente humanos. E isto, sem dúvida, tem sido a causa do seu maior sucesso.
Assim, será talvez desnecessário dizer aqui que depois de “Musica ao Longe” ele escreveu “Caminhos Cruzados”, “Um Lugar ao Sol” e finalmente, esse “Olhai os Lírios do Campo” que lhe valeu a consagração definitiva de público brasileiro.
Mas nunca será demais lembrarmos que a febril atividade literária de Erico, ofereceu-nos, ainda, uma serie de outros livros escritos “nas horas de descanso”, entre um romance publicado e outro a publicar, e que esses livros pesam também na sua bibliografia como obras excelentes de divulgação cientifica e histórica. ““A Vida de Joana D’Arc”, “Viagem à Aurora do Mundo”, “As Aventuras de Tibicuera”, Aventuras no Mundo da Higiene” e mais um punhado de livros infantis que alcançam hoje tiragens fabulosas.
E sobre o homem?
“SOU UM ANIMAL ESSENCIALMENTE DOMÉSTICO...”
O meu contato frequente com Erico Verissimo, facilita-me uma
quase perfeita análise de seus característicos pessoais. Homem calado, um tanto
tímido, que se sente mal quando está no meio de muita gente, ele mesmo confessa
ser “um animal essencialmente doméstico, que cultiva a paciência e a tolerância”.
Acha que o senso de humor nos pode salvar de muita situação irremediável e,
apesar de odiar a violência, diz que devemos exercê-la contra a violência,
quando necessário.
A súmula do seu programa de vida, conforme me disse certa
vez, está encerrada nestas poucas palavras do clássico espanhol Fray Luiz de
Leon: “A beleza da vida está em que cada um proceda de acordo com sua natureza e
seu oficio.”
Dono de um alto poder de compreensão humana, Erico Verissimo
sempre consegue uma explicação para todos os atos humanos. E é por isso, talvez, que ele suporta, por exemplo, um cidadão desconhecido que surge lá do cafundó
do mundo para convida-lo a conversarem de literatura. Fica extasiado como se
estivesse ouvindo uma declaração de amor. Porêm, não está ali. Anda muito
longe, sempre naquele mundo que ele mesmo construiu para si.
EU QUERO UMA ENTREVISTA!
E é aquilo o que mais ou menos está acontecendo comigo,
agora.
- Eu quero uma entrevista!
Erico olhe-me com o queixo apoiado na mão. Parece estar
preocupado, mas descarrega logo o pensamento com um suspiro resignado:
- A hora é escura. Ninguém sabe o que está para vir. Mas seja
o que for, é preciso ter coragem e esperança.
Vejo que ele regressou. Voltou daquele mundo. Andava na
guerra certamente com Vasco e outras figurinhas de “Saga”, o romance que está terminando. Não nesta
guerra a que se referiu a sua frase, mas na outra, a da Espanha de Franco e
Garcia Llorca.
Estou curioso como vocês, leitores, para ouvir Erico
Verissimo. E arrisco:
- Você...
- Eu? Não passo dum simples contador de histórias ...
- Não é isto não. Quero que conte alguma coisa sobre o livro
“Saga”. Como chegou ao plano do livro?
Os sobrecenhos sobem e descem. O rosto de Erico é uma reticência
aflitiva para mim. Finalmente vejo-o tomar um lápis e rabiscar num papel,
enquanto começa:
- Vasco estava querendo aparecer... Muitos leitores me
escreviam reclamando o reaparecimento do Gato do Mato. Ora, um rapaz como ele
não podia por mais tempo refrear o seu desejo de aventura e liberdade... Não
era natural que ele fosse lutar na Espanha, na Brigada Internacional? Foi o que
aconteceu. Lá se operou a sua reeducação sentimental diante do perigo. A vida se
lhe apresentou em sua rude crueza. Vasco viu homens de várias raças e
estudou-os nos campos da retaguarda, na trincheira, nas horas de calma, no
momento de perigo e, finalmente, num campo de concentração em meio da maior
miséria e desolação.
- E ele volta para o Brasil? – Interrogo, ansioso.
- Consegue voltar. Reencontra Clarissa e com ela velhos
conhecidos: o dr. Seixas, Fernanda, Noel. Faz novas relações. Encontra-se com
dr. Eugênio do “Olhai os Lírios”, além de mais uma boa dezena de outras
personagens novas.
Há um globo terrestre sobre um dos armários de livros. Olho-o
de baixo e percebo a costa atlântica do Brasil, o oceano e, lá em cima, em
direção ao Polo Norte, Portugal e a Espanha. Como o mundo é pequeno!
- Mas você não esteve na guerra da Espanha... Como é, então
que pode escrever sobre ela?
Erico solta o lápis, cruza as mãos nos joelhos:
- Eu lhe pergunto: o escritor que estuda a psicologia dum
criminoso precisa, necessariamente, ter cometido também um crime? O artista que
pinta o retrato duma mulher precisa “ter sido mulher?” “Será que um romancista
já “viveu” todas as situações que descreve em seus livros? Claro que não. No caso
de “Saga” sirvo-me de dados que foram fornecidos por um ex-combatente da
Brigada Internacional. Isso, no que diz respeito à rotina dos combatentes, à
organização de milícia, ao “clima”. Os tipos, bem como os episódios principais,
são invenção do autor...
- Podemos dizer, então, que se trata duma ficção contra um
fundo de realidade?
- Está certo.
- E quanto à técnica?
- E’ a mais simples e
direta possível. O livro todo é narrado por Vasco. Na segunda parte temos
oitenta por cento de diálogo. Vamos encontrar Vasco a se mover no meio duma colorida
sociedade.
- Pouca paisagem?
- Quase nenhuma... Nada de literatice, quero crer. Vasco
reproduz trechos do seu diário – mas apenas aqueles que contribuem para formar
o grande painel.
Fico pensando, por segundos, numa lição de Erico sobre um
preceito que nenhum ficcionista deve perder de vista: “É preciso um pouco de
tudo para fazer um mundo”. Mas há ainda uma pergunta:
- E Vasco encontra o seu rumo?
- Encontra.
- Qual é?
Erico larga o joelho e retoma o lápis.
- Não seja curioso...
- Mas... – insisto, inconformado, - nenhum rumo definitivo?
- Que é que é definitivo neste mundo?
Calo. Estou desconcertado, e continuaria assim se Erico não
voltasse de novo ao “Saga”.
- O que há em “Saga”, principalmente na primeira parte, são
tipos humanos a agir e falar em circunstâncias excepcionais; na segunda, tipos
humanos a viver a vida normal de uma cidade como a nossa. A minha preocupação
não foi descrever a “vida de Pôrto Alegre”, mas apenas dar o tom duma cidade de
hoje, com muito de seus aspectos e complicações.
- Em quantas partes se divide o livro? – Pergunto.
- Em três partes e uma quarta que não passa de um capitulo.
- Levam títulos?
- Sim. “O círculo de Giz”, ‘Sórdido Interlúdio”, “o Destino
Bate à Porta” e o capitulo que leva o nome de “Pastoral”.
“O destino bate à porta”. A frase fica brincando em meus
ouvidos.
A LIBERDADE DE SER E DISCUTIR
Já se tem escrito muito sobre a obra de Erico Verissimo. Pró contra. Muito mais pró do que contra. Porque, afinal de contas, o mundo estaria errado, de acordo com a própria concepção de Erico, se não houvesse discordâncias na alma humana. Sempre é necessária uma pequena dose de bom senso e outra de má vontade, para neutralizar. E é isto que os romancistas chamam “o pitoresco da vida”. Assim como existem os que procuram compreender tudo racionalmente, há os que vêm nos menores incidentes “um caso de polícia” ou “um atentado aos preceitos de qualquer coisa”. E, depois de tudo, todos têm o direito de ver como querem e como entenderem. Eu, por exemplo, não gosto de um dos livros de Erico Verissimo. Não gosto literalmente. Mas nem por isso, vou querer definir a sua obra. Seria pretensão demasiada. Por outro lado, penso agora e concordo com uma frase feliz de Maurício Rosenblatt que definiu paralelamente Vianna Moog e Erico Verissimo: “para Vianna Moog existem principalmente os problemas políticos e sociais: para Verissimo os morais e psicológicos”. Faço, pois, a pergunta com um ar de quem descobriu a América:
- De sorte que para você o importante é a paisagem humana...
- Claro. O homem e seus problemas, desejos, sonhos,
esperanças, angústias, alegrias. Esse grande e continuo tumulto que se chama
vida.
- E quanto à orientação espiritual das personagens?
- Elas têm toda a liberdade. Eu não as escravizo. Há no
livro católicos, ateus, protestantes, céticos, cínicos... enfim, eles são o que
são e no romance há a liberdade de ser e discutir.
OS LIVROS CAEM DE MADUROS
Observo agora que Erico encheu uma folha de papel com palavras e figurinhas, enquanto falava comigo. Sei que ele desenha. Folheando os álbuns da “Revista do Globo”, tenho encontrado muitas ilustrações de contos feitas por ele, quando era seu diretor. Bom desenhista? Interessante. Mas os calungas da folha de papel são notáveis. Há um que parece estar pulando. Vive, por certo. E a minha curiosidade obriga-me a perguntar, para não deixar que Erico fuja para o mundo novo.
- Você desenha, não é?
- Sim. Desenho estes calungas e faço com eles esquemas de situações. Não que isto seja indispensável, mas é que a coisa me diverte, e, para mim, a melhor maneira de pensar é rabiscando caretas num papel.
- Ahh!... E como é que planeja um livro?
- Parto de uma ideia, como no caso dos “Lírios do Campo” e depois escolho as personagens e os episódios. Ou, então, parto da personagem, como no caso de “Clarissa”. Em “Musica ao Longe”, temos uma ideia – a decadência duma família local e a ascensão de um emigrante – e o aproveitamento de uma personagem anterior – Clarissa.
- E o enredo?
- E simples. Eu não penso com palavras, mas com fatos. Passo a viver interiormente com as personagens: vejo-as a se moverem, falando, sentindo. E o livro me vai amadurecendo no espírito, até o dia em que cai de maduro. E cai no papel.
O MUNDO DEIXA DE EXISTIR
Nestes últimos dias, muitas vezes surpreendi Erico Verissimo
a escrever “Saga”. Sob a luz de um “abat-jour”, acomodado na poltrona, com a
máquina sobre os joelhos e alguns papéis em torno, pelo chão, ele datilografa
metralhando em pequenas folhas de papel (½ folha almasso).
Não escreve capítulos salteados, pois certamente, acha que o
homem é um feixe de memórias e o que uma personagem faz ou diz no capitulo 12,
por exemplo, é de certo modo uma consequência de coisas acontecidas nos
capítulos anteriores. Por isso, escreve o livro na ordem direta, de
preferência.
Seus dois filhos, Clarissa e Luiz Fernando, que não sabem o
que é o silêncio, quase sempre fazem questão de brincar no gabinete. Mas nada interrompe
Erico Verissimo. O mundo em volta dele deixa de existir e ele fica
completamente integrado no ambiente do livro. E quem pensar que Erico utiliza
algum fichário, ou consulta enciclopédias, se engana. Porque só depois de todo
o livro escrito é que faz as emendas à mão e com tinta verde. A cor da tinta,
disse-me ele, influi muito nestas emendas.
O FINAL DA FESTA
Um bocejo. Dois bocejos. A entrevista está dando sono. Erico se
levanta e vai a janela. Eu também vou. Olho para baixo e vejo o chão a quarenta
metros. Longe, o Alto da Bronze, o Guaíba, um morro, nuvens. O sobrecenho de
Erico está de novo fazendo curvas na testa.
- Algum plano? Outro livro em preparo?
- Nada disso. Não se sabe o que está para vir. A hora é
incerta. E se “Saga” não fosse uma história em torno destas inquietações de hoje,
eu nem teria escrito agora. Vou me atirar na leitura de bons livros, ouvir música
e esperar... Desejo que volte a paz ao mundo. Tenho esperança na América e no Brasil.
Acredito no socialismo, num estado descente, justo em que cada homem possa
adorar o seu Deus e viver a sua vida de acordo com seus ideais.
Diante de tanta frase bonita e de tão bela profissão de fé, Luiz Fernando põe fim à festa jogando uma bolinha de vidro do armário. Plim!

23 de dez. de 2020
Conto natalino do escritor Erico Verissimo publicado em 1939 na revista O Cruzeiro
O texto foi redescoberto pelo jornalista e pesquisador Vilmar Ledesma.
O conto passeia pelos bairros de uma Porto Alegre de cadeiras na calçada e bares alemães.
Em dezembro de 1939, uma edição especial de Natal da revista O Cruzeiro, trazia, nas páginas 34, 35 e 36, um misto de conto/crônica de Natal assinado por Erico Verissimo. A narrativa passeia por vários bairros da Porto Alegre de 1939, flagrando diferenças sociais e étnicas da cidade ao retratar como tipos característicos de cada vizinhança encaram a noite de Natal. É o retrato de uma Porto Alegre ainda muito germânica, algo que a II Guerra, que naquele ano já havia eclodido na Europa, mudaria muito.
Video no youtube Porto Alegre de Erico Verissimo
NOITE DE NATAL EM PORTO ALEGRE
POR ERICO VERISSIMO
As estrelas caíram no Guaíba. Piscam luzes nas ilhas escuras. O motor duma lancha bate surdo e alto como um enorme coração medroso. Junto do cais há uma floresta desgalhada de mastros. A água marulha, mole, bate no costado dos barcos adormecidos. Na proa de um navio alemão que veio de Hamburgo recorta-se o vulto dum homem. Dou uma estrela pelos seus pensamentos: talvez ganhe, em troca, um lindo poema. Dou duas estrelas... três estrelas... todo o céu... Olhe que vou bater... Todo o céu, meu romântico marinheiro, inclusive a lua, as nuvens e os querubins... O homem continua imóvel. Nada feito. Sigo adiante, passo pelos guindastes que não têm Natal. Paro para contemplar um veleiro, vejo luzes lá dentro, ouço vozes, o som duma cordeona. Depois é uma barcaça de carão, uma draga, de novo um navio mercante. Um caíque se aventura rio em fora, um vulto rema sereno, a noite é tão silenciosa ali no cais que julgo ouvir a suave batida dos remos ferindo a água. Decerto aquele homem vai pescar estrelas. É preciso uma grande rede para pescar estrelas. (Quando é que a gente se livra do fantasma do Tagoro?) Jogo o meu cigarro no rio, desejo-lhe um “Feliz Natal!” e sigo para a cidade.
DIÁLOGO
- No Norte, o Natal é diferente... – dizia meu amigo
pernambucano.
- Este entusiasmo pelo Natal – expliquei – este costume de
enfeitar pinheirinhos e fazer que o Papai Noel apareça na véspera de Natal, nos
foram trazidos pelos imigrantes alemães. Ensinaram-nos também muitas
outras coisas. Algumas boas, outras más...
- É curioso. A filha do dono de minha pensão dá a
Papai Noel um nome esquisito.
- Pelznickel... Era assim que muitas das crianças de meu
tempo lhe chamavam... Christkindchen é o Menino Jesus... e não eram só as c
rianças de sangue alemão que conheciam e usavam esses nomes...
Pausa. Continuamos a andar. Aproximamo-nos da
rua dos Andradas. Mergulhamos no clarão dos combustores e dos letreiros
luminosos. A rua está negra de gente. Dos cafés vem o clamor de
vozes, risadas, música...
Meu companheiro para debaixo de um grande anúncio a gás
neon. Por um instante seu rosto fica purpúreo, e eu penso no conto de Poe
A Máscara da Morte Vermelha...
BAR ALEMÃO
Em cima do balcão de mármore, perto da máquina
registradora, ergue-se uma minúscula árvore de Natal. As velas coloridas
estão acesas, e os penduricalhos lampejam, refletindo as luzes da sala.
As mesas acham-se quase todas ocupadas. Sentamo-nos
perto do aquário. Um dos peixinhos japoneses encosta o focinho no vidro,
à altura de minha cabeça, e fica me olhando.
- São conhecidos? – indaga o meu companheiro.
- Ah... conhecemo-nos de cumprimento.
Um garçom se aproxima. Pedimos chopes.
Uma vitrola arremessa para o salão os compassos duma valsa
de Strauss. Aceitamo-la como se aceitam as coisas inevitáveis.
Olha em torno. Talvez sejamos os únicos brasileiros
puros (puros?) no bar. Só vejo epidermes claras, algumas caras
apopléticas, cabeleiras que vão desde o castanho bronzeado e chegam, via-ruivo
e cor-de-palha, até o louro de platina. Um minuto de silêncio em
homenagem a Jean Harlow.
- Prosit! – diz meu companheiro.
- Prosit – respondo. E, depois do primeiro gole,
ainda com um bigode de espuma, acrescento – Qual! O de que nós dois
precisamos é de uma bela nacionalização...
As conversas crescem, sobem como ondas quentes. Faz
calor. Um senhor gordo passa o lenço pela nuca vermelha, lustrosa e
pregueada. Uma vasta senhora ciclópica abana-se com um leque, bate com
ele nos seios fartos que decerto já amamentaram algum Siegfried.
As paredes do bar estão eriçadas de pontas de cervo.
Viva a falta de malícia germânica!
Os peixes nadam por entre algas. Faz de conta que
elas são as suas árvores-de-natal. Mas... nada de sentimentalismos em
torno de peixes.
Strauss retirou-se de cena. Agora saem da vitrola os
acordes duma doce melodia conhecida. Há como que um vácuo na sala:
um súbito buraco de silêncio se abre. E de repente, sem o comando dum
maestro, todos começam a cantar “Sttile Nacht, Heilige Nacht...” Parece
que se sentem felizes. Mas duma felicidade triste. Lembram-se
decerto de Vaterland. E no entanto muitos deles são apenas netos de
alemães, nunca viram a Alemanha a não ser em cartões-postais.
Raça... uma grande coisa, amigo! Mas que perigo! Pegamos o chope e saímos.
COMISSÃO JULGADORA
Concurso de árvores de natal instituído por uma grande
empresa. Lá vai serenamente dentro dum Lassale a comissão
julgadora. Poetas, jornalistas, pintores, escultores e um senhor do
comércio local. Visitam as casas que se inscreveram no concurso.
São recebidos com amabilidades, doces e bebidas. Na primeira casa, tudo
ótimo. Uma linda árvore. Crianças adoráveis. Um casal muito
simpático. Passam para a segunda casa. A mesma cena. Mais
bebidas. Já o mundo, para a comissão julgadora, passa a ser um estranho
lugar cheio de alegrias fumegantes, de gente adorável e da mais absoluta e
excitante alegria. Terceira casa. “Agora queremos oferecer aos
senhores alguma coisinha para beber...”. Ótima ideia. E lá se vai a
comissão julgadora. Quarta casa. O presidente da comissão entra na
sala, olha a árvore de Natal e depois chama o secretário para um canto e, com
voz arrastada e grossa, lhe pergunta:
- Senhor secretário... não acha... não acha... que é um
esbanjamento inútil... fazerem... du... duas árvores de Natal?
O secretário, que já não pode com o peso das pálpebras,
fixa o olhar no pinheiro enfeitado e protesta:
- Perdão, Senhor presidente... Duas não... Três!
NA FLORESTA
Passamos por uma casa de janelas iluminadas.
Relanceio os olhos para dentro da sala. Basta aquela visão rápida para eu
recompor depois mentalmente a cena. O dono da casa deve se chamar Shultz
ou Schmidt. Trabalha numa firma alemã da Rua Sete. Tem três
filhos: Willy, Karl e Trude. Estão esperando o Pelznickel...
A árvore de Natal vem exercen do suas funções regularmente há seis anos, desde
que Willy nasceu. Frau Schultz ou Schmidt fez uma linda cuca. Há
dois barris de chope na área. Os rapazes da firma vão aparecer.
“Que farra!” – antegoza o senhor Schultz ou Schmidt. Cantarão abraçados
canções engraçadas. Pelznickel vai trazer uma boneca para trude,
soldadinhos nazistas para Karl e um avião de bombardeio para Willy.
NA RUA DUQUE
É uma casa alta e antiga, com azulejos. Família
tradicional. Grande árvore de Natal na varanda.
O dono da casa é médico. Tem quatro filhos. Os
dois primeiros acreditam em Papai Noel, os outros dois não.
O rádio enche a casa de música. Vozes alegres se
escapam pelas janelas escancaradas.
Dona M aria vai buscar os gelados no refrigerador. Na
grande mesa alinham-se pratos com sanduíches, nozes, avelãs, castanhas e
passas. Ouve-se o estouro de uma garrafa de champanhe que se abre.
Não há canções tradicionais.
O senhor nacionalista conversa com um tenente do exército:
- Pois é. Precisamos acabar com esses
estrangeirismos. Nada de Papá Noel ou de Pelznickel. Vovô Índio...
É... Vovô Índio. Que diabo! Temos neve? Temos pinheiro?
Isso é coisa para a Europa.
- A América para os americanos – obtemperou o oficial.
O senhor nacionalista fica um instante pensativo e depois
continua:
- E porque não promovemos o nosso Negrinho do
Pastoreio a papai Noel? Ficava admirável. Em vez de pinheiro, um
umbu... ou outra árvore menor... Bastava acender uma vela para o Negrinho
e ficar a pedir um presente...
Ficou sorrindo não para o tenente mas para a própria ideia.
CIDADE BAIXA
Aqui nessa zona de casas melancólicas, pequenas e velhas
começou a cidade. Olho discretamente para dentro de uma casa de porta e
janela e vejo uma árvore de Natal solitária no centro da pequena sala.
Luz amarelada a alumiar meia dúzia de caras tristes. Casa decerto de um
modesto funcionário público que não foi contemplado no reajustamento.
Ele, a mulher, a filha solteirona, a filha noiva ao lado do eterno noivo (que
decerto também não foi contemplado em coisa nenhuma nesta vida). Estão
tristes e graves, parece que a árvore de Natal é uma criança morta e eles estão
ali em silêncio, velando o anjinho...
NOS NAVEGANTES
Para as famílias que moram nas velhas barcaças encalhadas
na praia do Navegantes não há Natal.
NOS MOINHOS DE VENTOS
Palacete dum industrialista alemão que ficou rico com a
guerra (a primeira). Grande parque com palmeiras, pinheiros e outras
árvores que a escuridão e a falta de conhecimento de botânica me impedem de
classificar.
Janelas fechadas. A fraulein que cuida da casa saiu
com o namorado, um mecânico ruivo e atlético. Decerto a esta hora estão
bebendo num bar qualquer.
Os donos da casa foram passar o Natal na Alemanha.
NO BONFIM
O Bonfim é o “ghetto”. Lojas, cafés, dois cinemas,
judeus velhos sentados nas frentes das casas, barrete negro na cabeça, barbas
longas grisalhas ou completamente brancas. Mocinhos e Mocinhas a passear
nas calçadas. O Centro Social Israelita. Salões de bilhar.
Aqui e ali uma casa de família brasileira.
Para esta gente Cristo ainda não nasceu.
Mas aquela meninazinha que ali está na calçada, de dedo na
boca, e que se chama Lea, deita olhares compridos de inveja para a árvore de
Natal que cintila na casinha da família brasileira.
COLÔNIA AFRICANA*
Uma zona em que as fronteiras do “ghetto” e da Colônia
Africana se misturam. Começamos a ver negros e negras endomingados para
festejar o Natal. Alguns deles foram ao “cabelizador” alisar a carapinha,
muitos botaram na cabeça, no lenço, na lapela uma loção que tem um cheiro que
lembra o doce de batatas.
A rua é de terra batida cor de rosa. A casa, de
tábua. A família é grande e há muitos convidados. A maioria deles
se acha no terreiro, debaixo das árvores. Um mulato cabelizado toca um
violão. Um preto começa a tocar um samba. O refresco corre a rosa
(framboesa, naturalmente).
Na sala de visitas há um presépio encardido. E também
um pequeníssimo e esmirrado pinheirinho cheio de curiosos enfeites: vidros de
iodo vazios, lâmpadas elétricas queimadas, colares de contas coloridas,
vidrilhos e flores de papel de seda.
Tudo indica que a festa vai acabar em macumba.
DÚVIDA
Nas ruas alguns homens se abraçam e quase todos parecem
alegres. Desejam-se bom Natal e muitos aproveitam o pretexto para tomar
tremendas bebedeiras.
- Eu só queria saber uma coisa...
- Que é? – indagou o companheiro.
- É se essa gente realmente se lembra que hoje se festeja o
nascimento de Jesus...
O amigo parou, franziu a testa numa careta de estranheza e
exclama:
- Mas é mesmo, rapaz! E eu que nem me lembrava
disso!?
NOTA SENTIMENTAL
O Natal do poeta solitário que não tem família nem
esperança e que anda pelas ruas como cachorro sem dono a olhar para as
estrelas?
Oh! Não... Mil vezes não!
Revista O Cruzeiro, 23 de
dezembro de 1939
- A
região em que se localizava a Colônia Africana é o hoje bairro Rio Branco
(nota do editor).
Fonte: ZeroHora/Caderno PrOA em 19/12/2015

23 de set. de 2020
Pronunciamento do Deputado Estadual Ruy Carlos Ostermann, autor do projeto de lei nº23/83, que deu nome à Casa de Cultura Mario Quintana ao ex-Majestic Hotel.
Dia 28 de junho de 1983 na Assembleia Legislativa.
![]() |
"Sr. Presidente, Srs. Deputados:
Nesta casa se presta, neste momento, a homenagem talvez estranha mas
indispensável à poesia.
Em tempo de extrema dificuldade para a articulação até mesmo das frases,
em tempo de extrema penúria para o conteúdo das frases, em tempo de silêncios,
em tempo em que a palavra não se ouve e ela se cala, me parece que lembrar que
um prédio, da mais bonita e saudosa arquitetura de Porto Alegre, o ex-majestic
Hotel, seja agora transformado em Casa de Cultura e que por iniciativa de um
Projeto de Lei desta Casa possa esta Casa de Cultura denominar-se 'Mario
Quintana', eu penso que se está, sob muitas formas, agradecendo, retribuindo,
devolvendo de algum modo a alegria, a justeza da frase, a capacidade de
embevecimento e, sem dúvida, os valores morais, estéticos e de humanidade de um
Poeta.
Esta Casa tem se caracterizado pela defesa intransigente de fatos
imediatos, dolorosos, cruéis e contundentes. Poucas vezes ela pôde, no
entanto, demorar-se numa atitude, talvez, até surpreendente, para abrigar, na
generosidade, a um Poeta e designar-lhe então um lugar na cidade, na cidade que
ele sempre amou, que ele soube amar nos seus desvios, nas suas esquinas, que
ele soube, sobretudo, amar na sua paisagem humana.
Este homem que solidariamente, durante algum tempo, justificou quase que
a preservação do ex-Majestic Hotel, esse homem que transitava solitário por
aqueles arredores e que lá, certamente escreveu algumas das páginas, alguns dos
versos que hão de ficar na memória, na sensibilidade brasileira, está a merecer
hoje, nesta Casa - e estou fazendo o encaminhamento da votação - um gesto que
eu entendo que é de todos nós, pela forma unânime com que foi acolhido pelos
pareceres favoráveis que recebeu, nós estamos finalmente dando de volta, não
com a generosidade e nem com a grandeza do Poeta, mas com, enfim, a nossa
possibilidade politica, estamos dando de volta alguma coisa desta ampla,
indiscutível, admirável, contínua doação ás pessoas, que é a poesia de Mario
Quintana.
Penso que assim se faz uma pequena justificativa e com isso se justifica
o Projeto, que ora encaminhamos".
A cerimônia de votação, apresentação, pareceres, discursos e leituras
foi assistida por grande número de pessoas e, principalmente, por Mario
Quintana. Após a aprovação, ovacionada por todos, o Poeta subiu à tribuna para
um breve e emocionado pronunciamento que a todos comoveu:
“Aqui estão todas as correntes reunidas em torno da poesia, e é em nome
da poesia que agradeço aos senhores”.
·
KOSLOWSKY SILVA, Liana. Majestic Hotel – Memórias de um Monumento, v46,
p114-115 - 1992

A Livraria do Globo da Rua da Praia
A escultura de ferro no topo do prédio da Rua dos Andradas (Rua da Praia), talvez continue despercebida devido à pressa dos dias de hoje. ...

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Gosta de cartas e literatura? Então você não pode perder a ação que preparamos na biblioteca durante os meses de setembro e outubro! A...
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Estreamos a coluna Porto Alegre Literária apresentando a Verborhagia : revista eletrônica de literatura que prioriza escritores inde...