- Fantoches (1932)
- Clarissa (1933)
- Caminhos Cruzados (1935)
- A Vida de Joana d'Arc (1935)
- As Aventuras do Avião Vermelho (1936)
- Os Três Porquinhos Pobres (1936)
- Rosa Maria no Castelo Encantado (1936)
- Meu ABC (1936)
- Música ao Longe (1936)
- Um Lugar ao Sol (1936)
- As Aventuras de Tibicuera (1937)
- Um Urso com Música na Barriga (1938)
- Olhai os Lírios do Campo (1938)
- A Vida do Elefante Basílio (1939)
- Outra Vez Três OS Porquinhos (1939)
- Viagem à Aurora do Mundo (1939)
- Aventuras do Mundo da Higiene (1939)
- Saga (1940)
- Gato Preto em Campo de Neve (1941)
- O Resto é Silêncio (1942)
- A Volta do Gato Preto (1946)
- O Continente (1949)
- Primeiro volume da trilogia O Tempo e o Vento, o Retrato (1951)
- Segundo volume da trilogia, Noite (1954)
- Gentes e Bichos (1956)
- México (1957)
- O Ataque (1959)
- O Arquipélago (1961)
- Terceiro volume da trilogia, Senhor Embaixador (1965)
- Prisioneiro (1967)
- Israel em Abril (1969)
- Incidente em Antares (1971)
- Solo de Clarineta (1972)
16 de fev. de 2023
A OBRA COMPLETA DE ERICO

DO CADERNO H - 13/12/1975
O ERICO
Mario Quintana
Escritas antes, para comemorar os seus setenta anos, as palavras seguintes saem hoje dolorosamente ainda com a presença física de Erico Veríssimo. Foram escritas para ele as ler. Isso explica o tom com que as escrevi. E que conservo, Deus sabe por quê.
E como se nada tivesse acontecido. Porque a morte nunca desatualizou ninguém, e muito menos o nosso querido Erico.
"Quando, com os da minha geração, que era a dele, eu conheci o Erico, ficamos a chamá-lo para sempre e assim mesmo: o Erico. O mesmo aconteceu com as outras gerações. Como ele é, antes de tudo, uma presença humana, essa familiaridade explica-se por si. Ele está conosco é o que pensam. O raio do homem consegue ser contemporâneo de todas as gerações.
Pois não será esse, acaso, o segredo de um verdadeiro romancista?
Por isso é que ele entra agora na casa dos setenta com a mesma afoiteza e curiosidade com que entrou na casa dos vinte, de olhos bem abertos para a vida. A vida continuou. Ele também. Sempre em dia com ela.
Aliás, a vida está sempre em dia. Essa obsessão de contar o tempo, deixemo-la para os relógios, máquinas inumanas. Deixemos, pois, a casa dos setenta uma abstração e entremos na acolhedora casa do Erico. Aceitemos a rodada de cafezinho que Dona Mafalda nos serve. Olhemos em torno. Há sempre lá novas caras. Há sempre alguém falando, um visitante, é claro, e o Erico escutando.
Ele sempre soube escutar.
Não sei o que ele pensava de nós, os da sua geração, quando o conhecemos. Mas nós o achávamos diferente. Desconfio que esse adjetivo não deve agradar lá muito a quem quis sempre comungar. Emendo, em tempo e a bem da verdade: cada um de nós é que queria ser diferente. Ele era igual. Ele era ele, sempre foi ele.
Alguém que soube dar um honesto testemunho do mundo e de si mesmo aos homens. Agora compreendo. Foi essa integridade que nos atraiu, naqueles longes tempos... E que, até hoje, continua atraindo os seus leitores".

15 de jul. de 2022
Escrita à moda antiga
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Erico
Verissimo com sua Royal vermelha, s.d. Fotógrafo não identificado. Arquivo
Erico Verissimo/Acervo IMS |
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A
Remington Junior preta de Lygia Fagundes Telles, 2013. Fotografia
de Marcio Isensee. Arquivo Lygia Fagundes Telles / Acervo IMS |
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A máquina
de Rachel de Queiroz na fazenda Não me Deixes, 1997. Foto de Edu Simões.
Arquivo Edu Simões/ Acervo IMS |
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Rachel de Queiroz com sua máquina de escrever, c. 1950. Fotógrafo não identificado. Arquivo Rachel de Queiroz/Acervo IMS |
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Otto Lara Resende no escritório, 1992. Foto de Helena Lara Resende. Arquivo Otto Lara Resende/Acervo IMS |
Na foto, percebe-se a intimidade entre homem e máquina, a natureza solitária do trabalho do escritor e o balé gestual já referido: enquanto a mão esquerda segura as folhas já retiradas da máquina, a direita confunde-se com o próprio papel nesse movimento.
LYZA BRASIL - 2014

4 de fev. de 2022
vídeo - Erico Verissimo e sua esposa Mafalda visitam o amigo Mario Quintana no Hotel Majestic
O escritor Erico Verissimo e sua esposa, Mafalda, passaram a lua-de-mel no Majestic Hotel, vindos de Cruz Alta, em 1931.

10 de jan. de 2022
vídeo - Artista Plástico Freddy Sorribas faz homenagem a Erico Verissimo em 1993
Anualmente a Biblioteca Erico Verissimo mantinha atividades voltadas para a divulgação das obras de seu patrono. Naquele ano de 1993, foram organizadas programações durante a semana como forma de dar destaque a sua obra literária. Uma delas foi à execução de uma obra pictórica relativa à literatura de Erico Verissimo. Essa obra foi executada nos dias 17 e 18 de dezembro, no espaço interno da Biblioteca, onde ficou exposta até o ano de 2020.

5 de nov. de 2021
Casa de Cultura Mario Quintana - março de 1991- Projeto Original
APRESENTAÇÃO
A Casa de Cultura Mario Quintana foi pensada e planejada para a realidade cultural do Rio Grande do Sul. Deve, portanto, ter a clara consciência de estar situada num país de terceiro mundo, com suas limitações e carências, e saber tirar proveito deste fato: se faltam meios, há tempo e espaços disponíveis e cabe a nós preencher este tempo e ocupar os espaços.
Deve repensar sua latinidade sem traumas, de forma positiva.
Deve buscar o contemporâneo, sem esquecer as raízes e as etnias que contribuíram para a sua formação.
Deve ser ágil, dinâmica, criativa, inquisidora, crítica, buscando o acerto mesmo através do erro; adolescente e não senhoril. E deve, principalmente, ousar, e ousar muito, pois somente aos que têm ousadia é dado acordar no futuro.
Sergio Napp Diretor da CCMQ
HISTÓRICO
Início do século XX. A modernidade estava presente em todas as correntes do pensamento humano. A era moderna, iniciada no final do século passado, trazia a ciência e a tecnologia a serviço do homem. Os automóveis, os aviões, o telefone e os grandes movimentos culturais transformavam o perfil das capitais.
Em meio a esta agitação cultural, nascia na Porto Alegre província um projeto audacioso. O arquiteto alemão Theo Wiederspahn, contratado por Horácio de Carvalho, surpreendia a todos ao projetar em estilo neoclássico, dois prédios interligados por passarelas, que cruzavam por cima de uma via pública e tinha em seu topo duas cúpulas. Em 1923, os irmãos Masgrau, arrendatários do prédio, inaugurariam ali o Hotel Majestic.
As características diferenciadas do prédio e o atendimento dos arrendatários dariam popularidade ao local. No hotel desfilavam artistas, intelectuais e personalidades, como os ex-presidentes Getúlio Vargas, João Goulart, o escritor Erico Veríssimo e os cantores João Gilberto, Dalva de Oliveira, entre muitos outros.
O tempo foi passando, a cidade romântica do início do século foi crescendo, dando lugar aos grandes e frios espigões, a violência e a poluição. Surgia a decadência e a desumanização de que padecem as áreas centrais de todas as grandes cidades.
O grande Hotel Majestic não escapou a esta realidade. Entrava na década de setenta longe de seu esplendor, deixando de ser um hotel tradicional, para abrigar, basicamente, moradores permanentes.
Um de seus mais ilustres moradores foi Mario Quintana. O poeta ali viveu de 1968 até 1980, quando o prédio foi fechado definitivamente como hotel.
Sem brilho, desgastada e consumidas pelo tempo, a bela edificação estava ruindo. Eram os vazamentos e pinturas descascando e rebocos caindo. Mesmo assim, a obra projetada no início do século, ainda chamava atenção pela importância arquitetônica e histórica. Precisava ser preservada e recuperada.
Em 1980, o Governo do Estado, através do Banco do Estado do Rio Grande do Sul, adquire o prédio. Evita-se assim, uma provável demolição para dar lugar a outro espigão. Já se pensava nesta época em instalar um centro de cultura no prédio do antigo Majestic. Começaria uma nova etapa para o surpreendente edifício que havia funcionado como hotel por 57 anos. Permanecendo desativado por mais de dois anos, em março de 1983 um espaço de exposições é inaugurado no térreo, sendo o prédio reaberto na tentativa de instalar o centro de cultura. No mês de julho do mesmo ano, um projeto aprovado na Assembleia Legislativa denomina o novo espaço cultural de Casa de Cultura Mario Quintana, homenageando o grande poeta e antigo morador do então Hotel Majestic. Dois anos mais tarde, o prédio seria tombado pelo patrimônio Histórico e Artístico do Estado.
A partir de sua abertura como Casa de Cultura, e por seis anos o prédio funcionaria precariamente. A primeira administração esteve a cargo da professora bibliotecária Ivette Zietlon Duro, substituída em 1984, pela artista plástica Iara Gay Castro e posteriormente, em 1986 pela especialista em educação, Maria Gercira de Moura Diniz. Devido à falta de condições do edifício era possível utilizar tão somente o térreo e o primeiro andar.
O Hotel Majestic para abrigar a sonhada Casa de Cultura pedia restaurações urgentes. Constatada, a total impossibilidade para desenvolver qualquer trabalho naquelas condições, iniciou uma verdadeira luta na busca de recursos no sentido de recuperação e reciclagem da edificação. Conforme algumas ideias, das administrações estaduais anteriores, a obra poderia levar até trinta anos para ser concluída. Porém, durante a administração Simon-Guazzelli, em 1987, sob a direção do engenheiro e artista Sérgio Napp, um projeto do que deveria ser uma Casa de Cultura começou a ser estudado junto com a sua recuperação. O prédio viabilizava a ocupação de seus espaços internos para as mais variadas atividades. Em julho, deste mesmo ano, o estudo preliminar foi apresentado ao público e as instituições culturais para ampliar as discussões sobre o futuro da obra. Em março de 1989, o anteprojeto de autoria dos arquitetos Joel Gorski e Flávio Kiefer, foi concluído. O projeto dotaria o prédio de uma total integração em todas as áreas internas, onde se desenvolveriam as atividades culturais. Num trabalho inovador, em termos culturais e arquitetônicos a futura Casa de Cultura Mario Quintana permitiria um contato visual de todos os trabalhos presentes em seu interior. O novo lado a lado, com o antigo.
PROJETO
O projeto previu ainda a necessária infraestrutura moderna para o seu perfeito funcionamento. Iluminação, prevenção contra incêndios, ar condicionado, computador, antena parabólica e outros itens que fariam da Casa de Cultura Mário Quintana das mais completas da América Latina. Em julho de 1989, foi assinado o contrato entre o Estado e a empresa que viria realizar a obra. A Casa foi fechada para dar lugar ao canteiro de obras.
A postagem apresentou a introdução do folheto original.
O folheto completo está disponível para consulta local na Biblioteca Erico Verissimo.

26 de ago. de 2021
Escreve Justino Martins O Destino Bate à Porta Uma entrevista com Erico Verissimo A história de “Saga” A Experiência de um Romancista
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O burro é a "mascote" de Erico Verissimo e, portanto, tinha que aparecer na fotografia. "Assim seremos três, disse Erico". |
E, agora, mergulhado no fundo de uma poltrona contemplo Erico Verissimo à minha frente, numa atitude introspectiva, o sobrecenho esquerdo fazendo curvas na testa, o olhar perdido numa distância incomensurável, bem como eu tenho encontrado tantas vezes. Certamente ele anda pelo mundo, um mundo muito seu, acompanhado daquela pandilha de figurinhas de tinta que nos representam em sua obra.
O fotógrafo saiu e deixou os vestígios do crime. No tecto, prende-se uma nuvem de fumaça leitosa e em todo o gabinete vaga um cheiro seco e ardente que quase nos sufoca. Abro a janela e olho o perfil de Erico. Ele continua viajando e não o interrompo. Conheço-o muito bem sei que será inútil fazer qualquer pergunta no momento. Até sinto vontade de desistir da entrevista.
“Levanto”? Não levanto?”
E me quedo de novo na poltrona. Só, então, me ocorre aproveitar o tempo rememorando o que sei de Erico Verissimo.
FOI ALÉM DOS SEUS DESEJOS...
Olho em tôrno. Livros ingleses, muitos livros ingleses descendo e subindo os armários. Nas paredes, excelentes cópias de um “moço” de Van Gogh e da “Olimpia” de Manet. Depois, Soneto Cósme , um tal de Costa e de novo Van Gogh em pequenas litografias semeadas pelos cantos.
E a primeira coisa que me surge é uma auto-definição que o romancista me deu, certa vez, a propósito de uma pergunta à toa: “No fundo, o que sou é bugre que leu muito os ingleses. O resultado são esses livros que andam por aí...”.
Vem-me ainda, à lembrança, outra vez em que Erico Verissimo disse ter hesitado entre literatura e a pintura. Só se decidiu em 1931, quando já contava 25 anos de idade e Manoelito de Ornelas lhe tinha “arrancado” o primeiro trabalho da gaveta. Entretanto, confessou-me jamais ter sonhado com uma carreira literária como a que fez. Seu único desejo era poder encontrar um editor e algumas dezenas de leitores de boa vontade... e nada mais.
Pouco egoísta, sem dúvida, ele tem tido muito mais do que desejava.
Daquele livrinho de contos “Fantoches”, publicado em 1932, Erico Verissimo passou, em seguida, para “Clarissa”, a novelinha onde já se anunciavam os desígnios de toda a sua obra e onde, pela primeira vez, foi traçado o contorno de um rosto moreno, ornado de cabelos negros repartidos ao meio. A menina Clarissa, um ano mais tarde, iria ser a companheira de outra personagem importante (Vasco, o Gato do Mato) que apareceria em “Musica ao Longe”, o romance que deu a Erico o Prêmio Machado de Assis, instituído pela Companhia Editora Nacional.
Mas a história literária de Erico Verissimo é bastante conhecida. Dentre os que apreciam a moderna literatura brasileira não há quem não a tenha acompanhado passo a passo. Não há quem, lendo um livro seu, tenha podido fugir à tentação de ler os outros e esperar ansiosamente os que ele promete. Porque Erico Verissimo, ao meu ver, sem deixar de estar integrado ao movimento de renovação por que passou a literatura nacional desde 1930, dirige-se para um horizonte à parte, encaminha-se por uma estrada diferente daquela que segue a maioria dos nossos romancistas.
Sua obra, dentro do espírito universalista que a orienta, obriga-o a um constante restabelecimento, embora se absorvendo completamente na exposição de um único e poderoso tema: os problemas essencialmente humanos. E isto, sem dúvida, tem sido a causa do seu maior sucesso.
Assim, será talvez desnecessário dizer aqui que depois de “Musica ao Longe” ele escreveu “Caminhos Cruzados”, “Um Lugar ao Sol” e finalmente, esse “Olhai os Lírios do Campo” que lhe valeu a consagração definitiva de público brasileiro.
Mas nunca será demais lembrarmos que a febril atividade literária de Erico, ofereceu-nos, ainda, uma serie de outros livros escritos “nas horas de descanso”, entre um romance publicado e outro a publicar, e que esses livros pesam também na sua bibliografia como obras excelentes de divulgação cientifica e histórica. ““A Vida de Joana D’Arc”, “Viagem à Aurora do Mundo”, “As Aventuras de Tibicuera”, Aventuras no Mundo da Higiene” e mais um punhado de livros infantis que alcançam hoje tiragens fabulosas.
E sobre o homem?
“SOU UM ANIMAL ESSENCIALMENTE DOMÉSTICO...”
O meu contato frequente com Erico Verissimo, facilita-me uma
quase perfeita análise de seus característicos pessoais. Homem calado, um tanto
tímido, que se sente mal quando está no meio de muita gente, ele mesmo confessa
ser “um animal essencialmente doméstico, que cultiva a paciência e a tolerância”.
Acha que o senso de humor nos pode salvar de muita situação irremediável e,
apesar de odiar a violência, diz que devemos exercê-la contra a violência,
quando necessário.
A súmula do seu programa de vida, conforme me disse certa
vez, está encerrada nestas poucas palavras do clássico espanhol Fray Luiz de
Leon: “A beleza da vida está em que cada um proceda de acordo com sua natureza e
seu oficio.”
Dono de um alto poder de compreensão humana, Erico Verissimo
sempre consegue uma explicação para todos os atos humanos. E é por isso, talvez, que ele suporta, por exemplo, um cidadão desconhecido que surge lá do cafundó
do mundo para convida-lo a conversarem de literatura. Fica extasiado como se
estivesse ouvindo uma declaração de amor. Porêm, não está ali. Anda muito
longe, sempre naquele mundo que ele mesmo construiu para si.
EU QUERO UMA ENTREVISTA!
E é aquilo o que mais ou menos está acontecendo comigo,
agora.
- Eu quero uma entrevista!
Erico olhe-me com o queixo apoiado na mão. Parece estar
preocupado, mas descarrega logo o pensamento com um suspiro resignado:
- A hora é escura. Ninguém sabe o que está para vir. Mas seja
o que for, é preciso ter coragem e esperança.
Vejo que ele regressou. Voltou daquele mundo. Andava na
guerra certamente com Vasco e outras figurinhas de “Saga”, o romance que está terminando. Não nesta
guerra a que se referiu a sua frase, mas na outra, a da Espanha de Franco e
Garcia Llorca.
Estou curioso como vocês, leitores, para ouvir Erico
Verissimo. E arrisco:
- Você...
- Eu? Não passo dum simples contador de histórias ...
- Não é isto não. Quero que conte alguma coisa sobre o livro
“Saga”. Como chegou ao plano do livro?
Os sobrecenhos sobem e descem. O rosto de Erico é uma reticência
aflitiva para mim. Finalmente vejo-o tomar um lápis e rabiscar num papel,
enquanto começa:
- Vasco estava querendo aparecer... Muitos leitores me
escreviam reclamando o reaparecimento do Gato do Mato. Ora, um rapaz como ele
não podia por mais tempo refrear o seu desejo de aventura e liberdade... Não
era natural que ele fosse lutar na Espanha, na Brigada Internacional? Foi o que
aconteceu. Lá se operou a sua reeducação sentimental diante do perigo. A vida se
lhe apresentou em sua rude crueza. Vasco viu homens de várias raças e
estudou-os nos campos da retaguarda, na trincheira, nas horas de calma, no
momento de perigo e, finalmente, num campo de concentração em meio da maior
miséria e desolação.
- E ele volta para o Brasil? – Interrogo, ansioso.
- Consegue voltar. Reencontra Clarissa e com ela velhos
conhecidos: o dr. Seixas, Fernanda, Noel. Faz novas relações. Encontra-se com
dr. Eugênio do “Olhai os Lírios”, além de mais uma boa dezena de outras
personagens novas.
Há um globo terrestre sobre um dos armários de livros. Olho-o
de baixo e percebo a costa atlântica do Brasil, o oceano e, lá em cima, em
direção ao Polo Norte, Portugal e a Espanha. Como o mundo é pequeno!
- Mas você não esteve na guerra da Espanha... Como é, então
que pode escrever sobre ela?
Erico solta o lápis, cruza as mãos nos joelhos:
- Eu lhe pergunto: o escritor que estuda a psicologia dum
criminoso precisa, necessariamente, ter cometido também um crime? O artista que
pinta o retrato duma mulher precisa “ter sido mulher?” “Será que um romancista
já “viveu” todas as situações que descreve em seus livros? Claro que não. No caso
de “Saga” sirvo-me de dados que foram fornecidos por um ex-combatente da
Brigada Internacional. Isso, no que diz respeito à rotina dos combatentes, à
organização de milícia, ao “clima”. Os tipos, bem como os episódios principais,
são invenção do autor...
- Podemos dizer, então, que se trata duma ficção contra um
fundo de realidade?
- Está certo.
- E quanto à técnica?
- E’ a mais simples e
direta possível. O livro todo é narrado por Vasco. Na segunda parte temos
oitenta por cento de diálogo. Vamos encontrar Vasco a se mover no meio duma colorida
sociedade.
- Pouca paisagem?
- Quase nenhuma... Nada de literatice, quero crer. Vasco
reproduz trechos do seu diário – mas apenas aqueles que contribuem para formar
o grande painel.
Fico pensando, por segundos, numa lição de Erico sobre um
preceito que nenhum ficcionista deve perder de vista: “É preciso um pouco de
tudo para fazer um mundo”. Mas há ainda uma pergunta:
- E Vasco encontra o seu rumo?
- Encontra.
- Qual é?
Erico larga o joelho e retoma o lápis.
- Não seja curioso...
- Mas... – insisto, inconformado, - nenhum rumo definitivo?
- Que é que é definitivo neste mundo?
Calo. Estou desconcertado, e continuaria assim se Erico não
voltasse de novo ao “Saga”.
- O que há em “Saga”, principalmente na primeira parte, são
tipos humanos a agir e falar em circunstâncias excepcionais; na segunda, tipos
humanos a viver a vida normal de uma cidade como a nossa. A minha preocupação
não foi descrever a “vida de Pôrto Alegre”, mas apenas dar o tom duma cidade de
hoje, com muito de seus aspectos e complicações.
- Em quantas partes se divide o livro? – Pergunto.
- Em três partes e uma quarta que não passa de um capitulo.
- Levam títulos?
- Sim. “O círculo de Giz”, ‘Sórdido Interlúdio”, “o Destino
Bate à Porta” e o capitulo que leva o nome de “Pastoral”.
“O destino bate à porta”. A frase fica brincando em meus
ouvidos.
A LIBERDADE DE SER E DISCUTIR
Já se tem escrito muito sobre a obra de Erico Verissimo. Pró contra. Muito mais pró do que contra. Porque, afinal de contas, o mundo estaria errado, de acordo com a própria concepção de Erico, se não houvesse discordâncias na alma humana. Sempre é necessária uma pequena dose de bom senso e outra de má vontade, para neutralizar. E é isto que os romancistas chamam “o pitoresco da vida”. Assim como existem os que procuram compreender tudo racionalmente, há os que vêm nos menores incidentes “um caso de polícia” ou “um atentado aos preceitos de qualquer coisa”. E, depois de tudo, todos têm o direito de ver como querem e como entenderem. Eu, por exemplo, não gosto de um dos livros de Erico Verissimo. Não gosto literalmente. Mas nem por isso, vou querer definir a sua obra. Seria pretensão demasiada. Por outro lado, penso agora e concordo com uma frase feliz de Maurício Rosenblatt que definiu paralelamente Vianna Moog e Erico Verissimo: “para Vianna Moog existem principalmente os problemas políticos e sociais: para Verissimo os morais e psicológicos”. Faço, pois, a pergunta com um ar de quem descobriu a América:
- De sorte que para você o importante é a paisagem humana...
- Claro. O homem e seus problemas, desejos, sonhos,
esperanças, angústias, alegrias. Esse grande e continuo tumulto que se chama
vida.
- E quanto à orientação espiritual das personagens?
- Elas têm toda a liberdade. Eu não as escravizo. Há no
livro católicos, ateus, protestantes, céticos, cínicos... enfim, eles são o que
são e no romance há a liberdade de ser e discutir.
OS LIVROS CAEM DE MADUROS
Observo agora que Erico encheu uma folha de papel com palavras e figurinhas, enquanto falava comigo. Sei que ele desenha. Folheando os álbuns da “Revista do Globo”, tenho encontrado muitas ilustrações de contos feitas por ele, quando era seu diretor. Bom desenhista? Interessante. Mas os calungas da folha de papel são notáveis. Há um que parece estar pulando. Vive, por certo. E a minha curiosidade obriga-me a perguntar, para não deixar que Erico fuja para o mundo novo.
- Você desenha, não é?
- Sim. Desenho estes calungas e faço com eles esquemas de situações. Não que isto seja indispensável, mas é que a coisa me diverte, e, para mim, a melhor maneira de pensar é rabiscando caretas num papel.
- Ahh!... E como é que planeja um livro?
- Parto de uma ideia, como no caso dos “Lírios do Campo” e depois escolho as personagens e os episódios. Ou, então, parto da personagem, como no caso de “Clarissa”. Em “Musica ao Longe”, temos uma ideia – a decadência duma família local e a ascensão de um emigrante – e o aproveitamento de uma personagem anterior – Clarissa.
- E o enredo?
- E simples. Eu não penso com palavras, mas com fatos. Passo a viver interiormente com as personagens: vejo-as a se moverem, falando, sentindo. E o livro me vai amadurecendo no espírito, até o dia em que cai de maduro. E cai no papel.
O MUNDO DEIXA DE EXISTIR
Nestes últimos dias, muitas vezes surpreendi Erico Verissimo
a escrever “Saga”. Sob a luz de um “abat-jour”, acomodado na poltrona, com a
máquina sobre os joelhos e alguns papéis em torno, pelo chão, ele datilografa
metralhando em pequenas folhas de papel (½ folha almasso).
Não escreve capítulos salteados, pois certamente, acha que o
homem é um feixe de memórias e o que uma personagem faz ou diz no capitulo 12,
por exemplo, é de certo modo uma consequência de coisas acontecidas nos
capítulos anteriores. Por isso, escreve o livro na ordem direta, de
preferência.
Seus dois filhos, Clarissa e Luiz Fernando, que não sabem o
que é o silêncio, quase sempre fazem questão de brincar no gabinete. Mas nada interrompe
Erico Verissimo. O mundo em volta dele deixa de existir e ele fica
completamente integrado no ambiente do livro. E quem pensar que Erico utiliza
algum fichário, ou consulta enciclopédias, se engana. Porque só depois de todo
o livro escrito é que faz as emendas à mão e com tinta verde. A cor da tinta,
disse-me ele, influi muito nestas emendas.
O FINAL DA FESTA
Um bocejo. Dois bocejos. A entrevista está dando sono. Erico se
levanta e vai a janela. Eu também vou. Olho para baixo e vejo o chão a quarenta
metros. Longe, o Alto da Bronze, o Guaíba, um morro, nuvens. O sobrecenho de
Erico está de novo fazendo curvas na testa.
- Algum plano? Outro livro em preparo?
- Nada disso. Não se sabe o que está para vir. A hora é
incerta. E se “Saga” não fosse uma história em torno destas inquietações de hoje,
eu nem teria escrito agora. Vou me atirar na leitura de bons livros, ouvir música
e esperar... Desejo que volte a paz ao mundo. Tenho esperança na América e no Brasil.
Acredito no socialismo, num estado descente, justo em que cada homem possa
adorar o seu Deus e viver a sua vida de acordo com seus ideais.
Diante de tanta frase bonita e de tão bela profissão de fé, Luiz Fernando põe fim à festa jogando uma bolinha de vidro do armário. Plim!

VIVA A VIDA! Um dos últimos textos de Erico
SUPLEMENTO ESPECIAL - ZH - 17/12/75 Um dos últimos textos escritos por Erico Verissimo, há pouco mais de um mês, foi para a apresentação de ...
