26 de ago. de 2021

Escreve Justino Martins O Destino Bate à Porta Uma entrevista com Erico Verissimo A história de “Saga” A Experiência de um Romancista

Fonte: REVISTA DO GLOBO
ANO: XII
nº: 276 - 22/06/1940

O burro é a "mascote" de Erico Verissimo e, portanto, tinha que aparecer na fotografia. "Assim seremos três, disse Erico".

E, agora, mergulhado no fundo de uma poltrona contemplo Erico Verissimo à minha frente, numa atitude introspectiva, o sobrecenho esquerdo fazendo curvas na testa, o olhar perdido numa distância incomensurável, bem como eu tenho encontrado tantas vezes. Certamente ele anda pelo mundo, um mundo muito seu, acompanhado daquela pandilha de figurinhas de tinta que nos representam em sua obra.

O fotógrafo saiu e deixou os vestígios do crime. No tecto, prende-se uma nuvem de fumaça leitosa e em todo o gabinete vaga um cheiro seco e ardente que quase nos sufoca. Abro a janela e olho o perfil de Erico. Ele continua viajando e não o interrompo. Conheço-o muito bem sei que será inútil fazer qualquer pergunta no momento. Até sinto vontade de desistir da entrevista.

“Levanto”? Não levanto?”

E me quedo de novo na poltrona. Só, então, me ocorre aproveitar o tempo rememorando o que sei de Erico Verissimo.

FOI ALÉM DOS SEUS DESEJOS...

Olho em tôrno. Livros ingleses, muitos livros ingleses descendo e subindo os armários. Nas paredes, excelentes cópias de um “moço” de Van Gogh e da “Olimpia” de Manet. Depois, Soneto Cósme , um tal de Costa e de novo Van Gogh em pequenas litografias semeadas pelos cantos.

E a primeira coisa que me surge é uma auto-definição que o romancista me deu, certa vez, a propósito de uma pergunta à toa: “No fundo, o que sou é bugre que leu muito os ingleses. O resultado são esses livros que andam por aí...”.

Vem-me ainda, à lembrança, outra vez em que Erico Verissimo disse ter hesitado entre literatura e a pintura. Só se decidiu em 1931, quando já contava 25 anos de idade e Manoelito de Ornelas lhe tinha “arrancado” o primeiro trabalho da gaveta. Entretanto, confessou-me jamais ter sonhado com uma carreira literária como a que fez. Seu único desejo era poder encontrar um editor e algumas dezenas de leitores de boa vontade... e nada mais.

Pouco egoísta, sem dúvida, ele tem tido muito mais do que desejava.

Daquele livrinho de contos “Fantoches”, publicado em 1932, Erico Verissimo passou, em seguida, para “Clarissa”, a novelinha onde já se anunciavam os desígnios de toda a sua obra e onde, pela primeira vez, foi traçado o contorno de um rosto moreno, ornado de cabelos negros repartidos ao meio. A menina Clarissa, um ano mais tarde, iria ser a companheira de outra personagem importante (Vasco, o Gato do Mato) que apareceria em “Musica ao Longe”, o romance que deu a Erico o Prêmio Machado de Assis, instituído pela Companhia Editora Nacional.

Mas a história literária de Erico Verissimo é bastante conhecida. Dentre os que apreciam a moderna literatura brasileira não há quem não a tenha acompanhado passo a passo.  Não há quem, lendo um livro seu, tenha podido fugir à tentação de ler os outros e esperar ansiosamente os que ele promete. Porque Erico Verissimo, ao meu ver, sem deixar de estar integrado ao movimento de renovação por que passou a literatura nacional desde 1930, dirige-se para um horizonte à parte, encaminha-se por uma estrada diferente daquela que segue a maioria dos nossos romancistas.

Sua obra, dentro do espírito universalista que a orienta, obriga-o a um constante restabelecimento, embora se absorvendo completamente na exposição de um único e poderoso tema: os problemas essencialmente humanos. E isto, sem dúvida, tem sido a causa do seu maior sucesso.

Assim, será talvez desnecessário dizer aqui que depois de “Musica ao Longe” ele escreveu “Caminhos Cruzados”, “Um Lugar ao Sol” e finalmente,  esse “Olhai os Lírios do Campo” que lhe valeu a consagração definitiva de público brasileiro.

Mas nunca será demais lembrarmos que a febril atividade literária de Erico, ofereceu-nos, ainda, uma serie de outros livros escritos “nas horas de descanso”, entre um romance publicado e outro a publicar, e que esses livros pesam também na sua bibliografia como obras excelentes de divulgação cientifica e histórica. ““A Vida de Joana D’Arc”, “Viagem à Aurora do Mundo”, “As Aventuras de Tibicuera”, Aventuras no Mundo da Higiene” e mais um punhado de livros infantis que alcançam hoje tiragens fabulosas.

E sobre o homem?            

“SOU UM ANIMAL ESSENCIALMENTE DOMÉSTICO...”

O meu contato frequente com Erico Verissimo, facilita-me uma quase perfeita análise de seus característicos pessoais. Homem calado, um tanto tímido, que se sente mal quando está no meio de muita gente, ele mesmo confessa ser “um animal essencialmente doméstico, que cultiva a paciência e a tolerância”. Acha que o senso de humor nos pode salvar de muita situação irremediável e, apesar de odiar a violência, diz que devemos exercê-la contra a violência, quando necessário.

A súmula do seu programa de vida, conforme me disse certa vez, está encerrada nestas poucas palavras do clássico espanhol Fray Luiz de Leon: “A beleza da vida está em que cada um proceda de acordo com sua natureza e seu oficio.”

Dono de um alto poder de compreensão humana, Erico Verissimo sempre consegue uma explicação para todos os atos humanos. E é por isso, talvez, que ele suporta, por exemplo, um cidadão desconhecido que surge lá do cafundó do mundo para convida-lo a conversarem de literatura. Fica extasiado como se estivesse ouvindo uma declaração de amor. Porêm, não está ali. Anda muito longe, sempre naquele mundo que ele mesmo construiu para si.

EU QUERO UMA ENTREVISTA!

E é aquilo o que mais ou menos está acontecendo comigo, agora.

- Eu quero uma entrevista!

Erico olhe-me com o queixo apoiado na mão. Parece estar preocupado, mas descarrega logo o pensamento com um suspiro resignado:

- A hora é escura. Ninguém sabe o que está para vir. Mas seja o que for, é preciso ter coragem e esperança.

Vejo que ele regressou. Voltou daquele mundo. Andava na guerra certamente com Vasco e outras figurinhas de “Saga”, o romance que está terminando. Não nesta guerra a que se referiu a sua frase, mas na outra, a da Espanha de Franco e Garcia Llorca.

Estou curioso como vocês, leitores, para ouvir Erico Verissimo. E arrisco:

- Você...

- Eu? Não passo dum simples contador de histórias ...

- Não é isto não. Quero que conte alguma coisa sobre o livro “Saga”. Como chegou ao plano do livro?

Os sobrecenhos sobem e descem. O rosto de Erico é uma reticência aflitiva para mim. Finalmente vejo-o tomar um lápis e rabiscar num papel, enquanto começa:

- Vasco estava querendo aparecer... Muitos leitores me escreviam reclamando o reaparecimento do Gato do Mato. Ora, um rapaz como ele não podia por mais tempo refrear o seu desejo de aventura e liberdade... Não era natural que ele fosse lutar na Espanha, na Brigada Internacional? Foi o que aconteceu. Lá se operou a sua reeducação sentimental diante do perigo. A vida se lhe apresentou em sua rude crueza. Vasco viu homens de várias raças e estudou-os nos campos da retaguarda, na trincheira, nas horas de calma, no momento de perigo e, finalmente, num campo de concentração em meio da maior miséria e desolação.

- E ele volta para o Brasil? – Interrogo, ansioso.

- Consegue voltar. Reencontra Clarissa e com ela velhos conhecidos: o dr. Seixas, Fernanda, Noel. Faz novas relações. Encontra-se com dr. Eugênio do “Olhai os Lírios”, além de mais uma boa dezena de outras personagens novas.


Há um globo terrestre sobre um dos armários de livros. Olho-o de baixo e percebo a costa atlântica do Brasil, o oceano e, lá em cima, em direção ao Polo Norte, Portugal e a Espanha. Como o mundo é pequeno!

- Mas você não esteve na guerra da Espanha... Como é, então que pode escrever sobre ela?

Erico solta o lápis, cruza as mãos nos joelhos:

- Eu lhe pergunto: o escritor que estuda a psicologia dum criminoso precisa, necessariamente, ter cometido também um crime? O artista que pinta o retrato duma mulher precisa “ter sido mulher?” “Será que um romancista já “viveu” todas as situações que descreve em seus livros? Claro que não. No caso de “Saga” sirvo-me de dados que foram fornecidos por um ex-combatente da Brigada Internacional. Isso, no que diz respeito à rotina dos combatentes, à organização de milícia, ao “clima”. Os tipos, bem como os episódios principais, são invenção do autor...

- Podemos dizer, então, que se trata duma ficção contra um fundo de realidade?

- Está certo.

- E quanto à técnica?

 - E’ a mais simples e direta possível. O livro todo é narrado por Vasco. Na segunda parte temos oitenta por cento de diálogo. Vamos encontrar Vasco a se mover no meio duma colorida sociedade.

- Pouca paisagem?

- Quase nenhuma... Nada de literatice, quero crer. Vasco reproduz trechos do seu diário – mas apenas aqueles que contribuem para formar o grande painel.

Fico pensando, por segundos, numa lição de Erico sobre um preceito que nenhum ficcionista deve perder de vista: “É preciso um pouco de tudo para fazer um mundo”. Mas há ainda uma pergunta:

- E Vasco encontra o seu rumo?

- Encontra.

- Qual é?

Erico larga o joelho e retoma o lápis.

- Não seja curioso...

- Mas... – insisto, inconformado, - nenhum rumo definitivo?  

- Que é que é definitivo neste mundo?

Calo. Estou desconcertado, e continuaria assim se Erico não voltasse de novo ao “Saga”.

- O que há em “Saga”, principalmente na primeira parte, são tipos humanos a agir e falar em circunstâncias excepcionais; na segunda, tipos humanos a viver a vida normal de uma cidade como a nossa. A minha preocupação não foi descrever a “vida de Pôrto Alegre”, mas apenas dar o tom duma cidade de hoje, com muito de seus aspectos e complicações.

- Em quantas partes se divide o livro? – Pergunto.

- Em três partes e uma quarta que não passa de um capitulo.

- Levam títulos?

- Sim. “O círculo de Giz”, ‘Sórdido Interlúdio”, “o Destino Bate à Porta” e o capitulo que leva o nome de “Pastoral”.

“O destino bate à porta”. A frase fica brincando em meus ouvidos.

A LIBERDADE DE SER E DISCUTIR



Já se tem escrito muito sobre a obra de Erico Verissimo. Pró contra. Muito mais pró do que contra. Porque, afinal de contas, o mundo estaria errado, de acordo com a própria concepção de Erico, se não houvesse discordâncias na alma humana. Sempre é necessária uma pequena dose de bom senso e outra de má vontade, para neutralizar. E é isto que os romancistas chamam “o pitoresco da vida”. Assim como existem os que procuram compreender tudo racionalmente, há os que vêm nos menores incidentes “um caso de polícia” ou “um atentado aos preceitos de qualquer coisa”. E, depois de tudo, todos têm o direito de ver como querem e como entenderem. Eu, por exemplo, não gosto de um dos livros de Erico Verissimo. Não gosto literalmente. Mas nem por isso, vou querer definir a sua obra. Seria pretensão demasiada. Por outro lado, penso agora e concordo com uma frase feliz de Maurício Rosenblatt que definiu paralelamente Vianna Moog e Erico Verissimo: “para Vianna Moog existem principalmente os problemas políticos e sociais: para Verissimo os morais e psicológicos”. Faço, pois, a pergunta com um ar de quem descobriu a América:

- De sorte que para você o importante é a paisagem humana...

- Claro. O homem e seus problemas, desejos, sonhos, esperanças, angústias, alegrias. Esse grande e continuo tumulto que se chama vida.

- E quanto à orientação espiritual das personagens?

- Elas têm toda a liberdade. Eu não as escravizo. Há no livro católicos, ateus, protestantes, céticos, cínicos... enfim, eles são o que são e no romance há a liberdade de ser e discutir.

OS LIVROS CAEM DE MADUROS

Observo agora que Erico encheu uma folha de papel com palavras e figurinhas, enquanto falava comigo. Sei que ele desenha. Folheando os álbuns da “Revista do Globo”, tenho encontrado muitas ilustrações de contos feitas por ele, quando era seu diretor. Bom desenhista? Interessante. Mas os calungas da folha de papel são notáveis. Há um que parece estar pulando. Vive, por certo. E a minha curiosidade obriga-me a perguntar, para não deixar que Erico fuja para o mundo novo.

- Você desenha, não é?

- Sim. Desenho estes calungas e faço com eles esquemas de situações. Não que isto seja indispensável, mas é que a coisa me diverte, e, para mim, a melhor maneira de pensar é rabiscando caretas num papel.

- Ahh!... E como é que planeja um livro?

- Parto de uma ideia, como no caso dos “Lírios do Campo” e depois escolho as personagens e os episódios. Ou, então, parto da personagem, como no caso de “Clarissa”. Em “Musica ao Longe”, temos uma ideia – a decadência duma família local e a ascensão de um emigrante – e o aproveitamento de uma personagem anterior – Clarissa.

- E o enredo?                            

- E simples. Eu não penso com palavras, mas com fatos. Passo a viver interiormente com as personagens: vejo-as a se moverem, falando, sentindo. E o livro me vai amadurecendo no espírito, até o dia em que cai de maduro. E cai no papel.

O MUNDO DEIXA DE EXISTIR

Nestes últimos dias, muitas vezes surpreendi Erico Verissimo a escrever “Saga”. Sob a luz de um “abat-jour”, acomodado na poltrona, com a máquina sobre os joelhos e alguns papéis em torno, pelo chão, ele datilografa metralhando em pequenas folhas de papel (½ folha almasso).

Não escreve capítulos salteados, pois certamente, acha que o homem é um feixe de memórias e o que uma personagem faz ou diz no capitulo 12, por exemplo, é de certo modo uma consequência de coisas acontecidas nos capítulos anteriores. Por isso, escreve o livro na ordem direta, de preferência.

Seus dois filhos, Clarissa e Luiz Fernando, que não sabem o que é o silêncio, quase sempre fazem questão de brincar no gabinete. Mas nada interrompe Erico Verissimo. O mundo em volta dele deixa de existir e ele fica completamente integrado no ambiente do livro. E quem pensar que Erico utiliza algum fichário, ou consulta enciclopédias, se engana. Porque só depois de todo o livro escrito é que faz as emendas à mão e com tinta verde. A cor da tinta, disse-me ele, influi muito nestas emendas.

O FINAL DA FESTA

Um bocejo. Dois bocejos. A entrevista está dando sono. Erico se levanta e vai a janela. Eu também vou. Olho para baixo e vejo o chão a quarenta metros. Longe, o Alto da Bronze, o Guaíba, um morro, nuvens. O sobrecenho de Erico está de novo fazendo curvas na testa.

- Algum plano? Outro livro em preparo?

- Nada disso. Não se sabe o que está para vir. A hora é incerta. E se “Saga” não fosse uma história em torno destas inquietações de hoje, eu nem teria escrito agora. Vou me atirar na leitura de bons livros, ouvir música e esperar... Desejo que volte a paz ao mundo. Tenho esperança na América e no Brasil. Acredito no socialismo, num estado descente, justo em que cada homem possa adorar o seu Deus e viver a sua vida de acordo com seus ideais.

Diante de tanta frase bonita e de tão bela profissão de fé, Luiz Fernando põe fim à festa jogando uma bolinha de vidro do armário. Plim!






23 de dez. de 2020

Conto natalino do escritor Erico Verissimo publicado em 1939 na revista O Cruzeiro

O texto foi redescoberto pelo jornalista e pesquisador Vilmar Ledesma. 

O conto passeia pelos bairros de uma Porto Alegre de cadeiras na calçada e bares alemães.

Em dezembro de 1939, uma edição especial de Natal da revista O Cruzeiro, trazia, nas páginas 34, 35 e 36, um misto de conto/crônica de Natal assinado por Erico Verissimo. A narrativa passeia por vários bairros da Porto Alegre de 1939, flagrando diferenças sociais e étnicas da cidade ao retratar como tipos característicos de cada vizinhança encaram a noite de Natal. É o retrato de uma Porto Alegre ainda muito germânica, algo que a II Guerra, que naquele ano já havia eclodido na Europa, mudaria muito.

Video no youtube Porto Alegre de Erico Verissimo


NOITE DE NATAL EM PORTO ALEGRE

POR ERICO VERISSIMO

As estrelas caíram no Guaíba.  Piscam luzes nas ilhas escuras.  O motor duma lancha bate surdo e alto como um enorme coração medroso.  Junto do cais há uma floresta desgalhada de mastros.  A água marulha, mole, bate no costado dos barcos adormecidos.  Na proa de um  navio alemão que veio de Hamburgo recorta-se o vulto dum homem.  Dou uma estrela pelos seus pensamentos:  talvez ganhe, em troca, um lindo poema.  Dou duas estrelas... três estrelas... todo o céu... Olhe que vou bater... Todo o céu, meu romântico marinheiro, inclusive a lua, as nuvens e os querubins... O homem continua imóvel.  Nada feito.  Sigo adiante, passo pelos guindastes que não têm Natal.  Paro para contemplar um veleiro, vejo luzes lá dentro, ouço vozes, o som duma cordeona.  Depois é uma barcaça de carão, uma draga, de novo um navio mercante.  Um caíque se aventura rio em fora, um vulto rema sereno, a noite é tão silenciosa ali no cais que julgo ouvir a suave batida dos remos ferindo a água.  Decerto aquele homem vai pescar estrelas.  É preciso uma grande rede para pescar estrelas.  (Quando é que a gente se livra do fantasma do Tagoro?)  Jogo o meu cigarro no rio, desejo-lhe um “Feliz Natal!” e sigo para a cidade.

DIÁLOGO

- No Norte, o Natal é diferente... – dizia meu amigo pernambucano.

- Este entusiasmo pelo Natal – expliquei – este costume de enfeitar pinheirinhos e fazer que o Papai Noel apareça na véspera de Natal, nos foram trazidos pelos imigrantes alemães.  Ensinaram-nos também muitas outras coisas.  Algumas boas, outras más...

- É curioso.  A filha do dono de minha pensão dá a Papai Noel um nome esquisito.

- Pelznickel... Era assim que muitas das crianças de meu tempo lhe chamavam... Christkindchen é o Menino Jesus... e não eram só as c rianças de sangue alemão que conheciam  e usavam esses nomes...

Pausa.  Continuamos a andar.  Aproximamo-nos da rua dos Andradas.  Mergulhamos no clarão dos combustores e dos letreiros luminosos.  A rua está negra de gente.  Dos cafés vem o clamor de vozes, risadas, música...

Meu companheiro para debaixo de um grande anúncio a gás neon.  Por um instante seu rosto fica purpúreo, e eu penso no conto de Poe A Máscara da Morte Vermelha...

BAR ALEMÃO

Em cima do balcão de mármore, perto da máquina registradora, ergue-se uma minúscula árvore de Natal.  As velas coloridas estão acesas, e os penduricalhos lampejam, refletindo as luzes da sala.

As mesas acham-se quase todas ocupadas.  Sentamo-nos perto do aquário.  Um dos peixinhos japoneses encosta o focinho no vidro, à altura de minha cabeça, e fica me olhando.

- São conhecidos? – indaga o meu companheiro.

- Ah... conhecemo-nos de cumprimento.

Um garçom se aproxima.  Pedimos chopes.

Uma vitrola arremessa para o salão os compassos duma valsa de Strauss.  Aceitamo-la como se aceitam as coisas inevitáveis.

Olha em torno.  Talvez sejamos os únicos brasileiros puros (puros?) no bar.  Só vejo epidermes claras, algumas caras apopléticas, cabeleiras que vão desde o castanho bronzeado e chegam, via-ruivo e cor-de-palha, até o louro de platina.  Um minuto de silêncio em homenagem a Jean Harlow.

- Prosit! – diz meu companheiro.

- Prosit – respondo.  E, depois do primeiro gole, ainda com um  bigode de espuma, acrescento – Qual!  O de que nós dois precisamos é de uma bela nacionalização...

As conversas crescem, sobem como ondas quentes.  Faz calor.  Um senhor gordo passa o lenço pela nuca vermelha, lustrosa e pregueada.  Uma vasta senhora ciclópica abana-se com um leque, bate com ele nos seios fartos que decerto já amamentaram algum Siegfried.

As paredes do bar estão eriçadas de pontas de cervo.  Viva a falta de malícia germânica!

Os peixes nadam por entre algas.  Faz de conta que elas são as suas árvores-de-natal.  Mas... nada de sentimentalismos em torno de peixes.

Strauss retirou-se de cena.  Agora saem da vitrola os acordes duma doce melodia conhecida.  Há como que um vácuo na sala:  um súbito buraco de silêncio se abre.  E de repente, sem o comando dum maestro, todos começam a cantar “Sttile Nacht, Heilige Nacht...”  Parece que se sentem felizes.  Mas duma felicidade triste.  Lembram-se decerto de Vaterland.  E no entanto muitos deles são apenas netos de alemães, nunca viram a Alemanha a não ser em cartões-postais.

Raça... uma grande coisa, amigo!  Mas que perigo!  Pegamos o chope e saímos.

COMISSÃO JULGADORA

Concurso de árvores de natal instituído por uma grande empresa.  Lá vai serenamente dentro dum Lassale a comissão julgadora.  Poetas, jornalistas, pintores, escultores e um senhor do comércio local.  Visitam as casas que se inscreveram no concurso.  São recebidos com amabilidades, doces e bebidas.  Na primeira casa, tudo ótimo.  Uma linda árvore.  Crianças adoráveis.  Um casal muito simpático.  Passam para a segunda casa.  A mesma cena.  Mais bebidas.  Já o mundo, para a comissão julgadora, passa a ser um estranho lugar cheio de alegrias fumegantes, de gente adorável e da mais absoluta e excitante alegria.  Terceira casa.  “Agora queremos oferecer aos senhores alguma coisinha para beber...”.  Ótima ideia.  E lá se vai a comissão julgadora.  Quarta casa.  O presidente da comissão entra na sala, olha a árvore de Natal e depois chama o secretário para um canto e, com voz arrastada e grossa, lhe pergunta:

- Senhor secretário... não acha... não acha... que é um esbanjamento inútil... fazerem... du... duas árvores de Natal?

O secretário, que já não pode com o peso das pálpebras, fixa o olhar no pinheiro enfeitado e protesta:

- Perdão, Senhor presidente... Duas não... Três!

NA FLORESTA

Passamos por uma casa de janelas iluminadas.  Relanceio os olhos para dentro da sala.  Basta aquela visão rápida para eu recompor depois mentalmente a cena.  O dono da casa deve se chamar Shultz ou Schmidt.  Trabalha numa firma alemã da Rua Sete.  Tem três filhos:  Willy, Karl e Trude.  Estão esperando o Pelznickel...  A árvore de Natal vem exercen do suas funções regularmente há seis anos, desde que Willy nasceu.  Frau Schultz ou Schmidt fez uma linda cuca.  Há dois barris de chope na área.  Os rapazes da firma vão aparecer.  “Que farra!” – antegoza o senhor Schultz ou Schmidt.  Cantarão abraçados canções engraçadas.  Pelznickel vai trazer uma boneca para trude, soldadinhos nazistas para Karl e um avião de bombardeio para Willy.

NA RUA DUQUE

É uma casa alta e antiga, com azulejos.  Família tradicional.  Grande árvore de Natal na varanda.

O dono da casa é médico.  Tem quatro filhos.  Os dois primeiros acreditam em Papai Noel, os outros dois não.

O rádio enche a casa de música.  Vozes alegres se escapam pelas janelas escancaradas.

Dona M aria vai buscar os gelados no refrigerador.  Na grande mesa alinham-se pratos com sanduíches, nozes, avelãs, castanhas e passas.  Ouve-se o estouro de uma garrafa de champanhe que se abre.

Não há canções tradicionais.

O senhor nacionalista conversa com um tenente do exército:

- Pois é.  Precisamos acabar com esses estrangeirismos.  Nada de Papá Noel ou de Pelznickel.  Vovô Índio... É... Vovô Índio.  Que diabo!  Temos neve?  Temos pinheiro?  Isso é coisa para a Europa.

- A América para os americanos – obtemperou o oficial.

O senhor nacionalista fica um instante pensativo e depois continua:

- E  porque não promovemos o nosso Negrinho do Pastoreio a papai Noel?  Ficava admirável.  Em vez de pinheiro, um umbu... ou outra árvore menor...  Bastava acender uma vela para o Negrinho e ficar a pedir um presente...

Ficou sorrindo não para o tenente mas para a própria ideia.

CIDADE BAIXA

Aqui nessa zona de casas melancólicas, pequenas e velhas começou a cidade.  Olho discretamente para dentro de uma casa de porta e janela e vejo uma árvore de Natal solitária no centro da pequena sala.  Luz amarelada a alumiar meia dúzia de caras tristes.  Casa decerto de um modesto funcionário público que não foi contemplado no reajustamento.  Ele, a mulher, a filha solteirona, a filha noiva ao lado do eterno noivo (que decerto também não foi contemplado em coisa nenhuma nesta vida).  Estão tristes e graves, parece que a árvore de Natal é uma criança morta e eles estão ali em silêncio, velando o anjinho...

NOS NAVEGANTES

Para as famílias que moram nas velhas barcaças encalhadas na praia do Navegantes não há Natal.

NOS MOINHOS DE VENTOS

Palacete dum industrialista alemão que ficou rico com a guerra (a primeira).  Grande parque com palmeiras, pinheiros e outras árvores que a escuridão e a falta de conhecimento de botânica me impedem de classificar.

Janelas fechadas.  A fraulein que cuida da casa saiu com o namorado, um mecânico ruivo e atlético.  Decerto a esta hora estão bebendo num bar qualquer.

Os donos da casa foram passar o Natal na Alemanha.

NO BONFIM

O Bonfim é o “ghetto”.  Lojas, cafés, dois cinemas, judeus velhos sentados nas frentes das casas, barrete negro na cabeça, barbas longas grisalhas ou completamente brancas.  Mocinhos e Mocinhas a passear nas calçadas.  O Centro Social Israelita.  Salões de bilhar.  Aqui e ali uma casa de família brasileira.

Para esta gente Cristo ainda não nasceu.

Mas aquela meninazinha que ali está na calçada, de dedo na boca, e que se chama Lea, deita olhares compridos de inveja para a árvore de Natal que cintila na casinha da família brasileira.

COLÔNIA AFRICANA*

Uma zona em que as fronteiras do “ghetto” e da Colônia Africana se misturam.  Começamos a ver negros e negras endomingados para festejar o Natal.  Alguns deles foram ao “cabelizador” alisar a carapinha, muitos botaram na cabeça, no lenço, na lapela uma loção que tem um cheiro que lembra o doce de batatas.

A rua é de terra batida cor de rosa.  A casa, de tábua.  A família é grande e há muitos convidados.  A maioria deles se acha no terreiro, debaixo das árvores.  Um mulato cabelizado toca um violão.  Um preto começa a tocar um samba.  O refresco corre a rosa (framboesa, naturalmente).

Na sala de visitas há um presépio encardido.  E também um pequeníssimo e esmirrado pinheirinho cheio de curiosos enfeites: vidros de iodo vazios, lâmpadas elétricas queimadas, colares de contas coloridas, vidrilhos e flores de papel de seda.

Tudo indica que a festa vai acabar em macumba.

DÚVIDA

Nas ruas alguns homens se abraçam e quase todos parecem alegres.  Desejam-se bom Natal e muitos aproveitam o pretexto para tomar tremendas bebedeiras.

- Eu só queria saber uma coisa...

- Que é? – indagou o companheiro.

- É se essa gente realmente se lembra que hoje se festeja o nascimento de Jesus...

O amigo parou, franziu a testa numa careta de estranheza e exclama:

- Mas é mesmo, rapaz!  E eu que nem me lembrava disso!?

NOTA SENTIMENTAL

O Natal do poeta solitário que não tem família nem esperança e que anda pelas ruas como cachorro sem dono a olhar para as estrelas?

Oh!  Não... Mil vezes não!


Revista O Cruzeiro, 23 de dezembro de 1939

 

  • A região em que se localizava a Colônia Africana é o hoje bairro Rio Branco (nota do editor).


Fonte:  ZeroHora/Caderno PrOA em 19/12/2015

 

 

23 de set. de 2020

Pronunciamento do Deputado Estadual Ruy Carlos Ostermann, autor do projeto de lei nº23/83, que deu nome à Casa de Cultura Mario Quintana ao ex-Majestic Hotel.

 Dia 28 de junho de 1983 na Assembleia Legislativa.


"Sr. Presidente, Srs. Deputados:


Nesta casa se presta, neste momento, a homenagem talvez estranha mas indispensável à poesia.

Em tempo de extrema dificuldade para a articulação até mesmo das frases, em tempo de extrema penúria para o conteúdo das frases, em tempo de silêncios, em tempo em que a palavra não se ouve e ela se cala, me parece que lembrar que um prédio, da mais bonita e saudosa arquitetura de Porto Alegre, o ex-majestic Hotel, seja agora transformado em Casa de Cultura e que por iniciativa de um Projeto de Lei desta Casa possa esta Casa de Cultura denominar-se 'Mario Quintana', eu penso que se está, sob muitas formas, agradecendo, retribuindo, devolvendo de algum modo a alegria, a justeza da frase, a capacidade de embevecimento e, sem dúvida, os valores morais, estéticos e de humanidade de um Poeta.

Esta Casa tem se caracterizado pela defesa intransigente de fatos imediatos, dolorosos, cruéis e contundentes. Poucas vezes ela pôde, no entanto, demorar-se numa atitude, talvez, até surpreendente, para abrigar, na generosidade, a um Poeta e designar-lhe então um lugar na cidade, na cidade que ele sempre amou, que ele soube amar nos seus desvios, nas suas esquinas, que ele soube, sobretudo, amar na sua paisagem humana.

Este homem que solidariamente, durante algum tempo, justificou quase que a preservação do ex-Majestic Hotel, esse homem que transitava solitário por aqueles arredores e que lá, certamente escreveu algumas das páginas, alguns dos versos que hão de ficar na memória, na sensibilidade brasileira, está a merecer hoje, nesta Casa - e estou fazendo o encaminhamento da votação - um gesto que eu entendo que é de todos nós, pela forma unânime com que foi acolhido pelos pareceres favoráveis que recebeu, nós estamos finalmente dando de volta, não com a generosidade e nem com a grandeza do Poeta, mas com, enfim, a nossa possibilidade politica, estamos dando de volta alguma coisa desta ampla, indiscutível, admirável, contínua doação ás pessoas, que é a poesia de Mario Quintana.

Penso que assim se faz uma pequena justificativa e com isso se justifica o Projeto, que ora encaminhamos".

A cerimônia de votação, apresentação, pareceres, discursos e leituras foi assistida por grande número de pessoas e, principalmente, por Mario Quintana. Após a aprovação, ovacionada por todos, o Poeta subiu à tribuna para um breve e emocionado pronunciamento que a todos comoveu:

“Aqui estão todas as correntes reunidas em torno da poesia, e é em nome da poesia que agradeço aos senhores”.

 

·        KOSLOWSKY SILVA, Liana. Majestic Hotel – Memórias de um Monumento, v46, p114-115 - 1992


28 de mai. de 2020

Literatura do Rio Grande do Sul - O Pártenon Literário

Na metade do século XIX, em um período de grande efervescência político-social, causado pelos movimentos republicanos e abolicionistas, ocorreu a fundação da Sociedade Pártenon Literário - na cidade de Porto Alegre, cujo presidente era o autor Caldre e Fião. Tal sociedade reuniu diversos intelectuais rio-grandenses da província de São Pedro que exploraram os mais variados gêneros literários. Os nomes mais importantes foram Caldre e Fião, os irmãos Apolinário, Aquiles e Apeles Porto-Alegre, Carlos Von Koseritz, Lobo da Costa, Hilário Ribeiro, Múcio Teixeira e Luciana de Abreu. O grupo também produziu uma revista, que seria o mais importante veículo de circulação do debate cultural gaúcho do período.

O Pártenon Literário cessou suas atividades literárias por volta de 1896.

Livraria Americana, na Rua da Praia X Rua da Ladeira, era ponto de encontro dos associados no fim do século XIX.
 

Duas obras do período que pode se destacar: 


Caldre e Fião - José Antônio do Vale Caldre e Fião (Porto Alegre, 15 de outubro de 1821 — 30 de março de 1876) foi um escritor, jornalista, político, médico e professor brasileiro. É considerado o patriarca da literatura gaúcha.

A Divina Pastora, romance, 1847;(o primeiro romance da literatura gaúcha e o segundo da história da literatura do Brasil). Publicado no Rio de Janeiro, com o subtítulo “Novela Rio-grandense”, dele, porém, não se conhecia um só exemplar, pois todos os da primeira edição tinham desaparecido misteriosamente, de modo que a obra se transformou em um dos maiores enigmas. Depois de 145 anos de grandes esforços de bibliófilos e pesquisadores, finalmente, em 1992, o livreiro Adão Fernando Monquelat, de Pelotas, localizou em Montevidéu, no Uruguai, o único exemplar até hoje conhecido de A Divina Pastora, que foi reeditado pela RBS no mesmo ano.
Caldre e Fião pertence a tradição do “folhetim”. Tratava-se de narrar uma sequência de aventuras em sucessão episódica, cuja leitura podia ser feita capítulo a capítulo, independentemente do resultado final. Via de regra, cada episódio correspondia a um “rodapé“ do jornal em que o romance era publicado.

























Apolinário - Apolinário José Gomes Porto-Alegre (Rio Grande, 29 de agosto de 1844 — Porto Alegre, 23 de março de 1904) foi um escritor, historiógrafo, poeta e jornalista brasileiro. É considerado um dos autores mais importantes do Rio Grande do Sul.
A obra de Apolinário Porto-Alegre possui como características o regionalismo e o romantismo. O Rio Grande do Sul é a temática de várias publicações, sendo sua principal O Vaqueano, de 1872. Alguns críticos afirmam que a obra foi inspirada no livro O Gaúcho, de José de Alencar.


fonte:

23 de abr. de 2020

Tempo de Mario Quintana


"SEISCENTOS E SESSENTA E SEIS" ou "O Tempo" - livro Esconderijos do Tempo - 1980


A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.


Quando se vê, 
já são seis horas!
Quando de vê, 
já é sexta-feira!
Quando se vê, 
já é natal…
Quando se vê, 
já terminou o ano…
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado…
Se me fosse dado um dia, 
outra oportunidade, 
eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas…
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo…
E tem mais: 
não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.


O Tempo e o Vento


Havia uma escada que parava de repente no ar
Havia uma porta que dava para não se sabia o quê
Havia um relógio onde a morte tricotava o tempo


Mas havia um arroio correndo entre os dedos buliçosos dos pés
E pássaros pousados na pauta dos fios do telégrafo


E o vento!


O vento que vinha desde o princípio do mundo
Estava brincando com teus cabelos...



Ah! Os relógios - livro “A Cor do invisível”, 1989.

Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas que até parecem mais uns necrológios...

Porque o tempo é uma invenção da morte:

não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira.

Inteira, sim, porque essa vida eterna somente por si mesma é dividida:não cabe, a cada qual, uma porção.


E os Anjos entreolham-se espantados quando alguém - ao voltar a si da vida -acaso lhes indaga que horas são...

3 de mar. de 2020

Março: Mês da Mulher

O Dia Internacional da Mulher é, sobretudo, um momento de reflexão para lembrar a luta pela igualdade. A biblioteca Erico Veríssimo oferece dicas de livros (do nosso acervo) escritos por mulheres pertinentes a esta celebração. 


‘O Segundo Sexo’ (1949), de Simone de Beauvoir

Uma leitura fundamental para quem se interessa por entender como, ao longo da história, as identidades das mulheres foram sendo construídas – normalmente em relação a um homem: filha, esposa, mãe, esquecendo-se de si mesmas. Ou seja, como a metade da população foi definida – e se autodefiniu – em função da outra metade. Se você quiser entender de uma vez por todas o que é isso de “não se nasce mulher: torna-se”, esse livro explica perfeitamente. Obra feminista discute o benefício que a igualdade real traria tanto para as mulheres como para os homens. É um ‘best-seller’ desde sua publicação, em 1949, e continua sendo de uma raivosa atualidade, apesar de ter sido escrito mais de sete décadas atrás.

‘Jane Eyre’ (1847), de Charlotte Brontë

Despe de convencionalismos e lugares comuns uma figura, a da mulher órfã, solteira e trabalhadora, que os escritores do século XIX retrataram quase sempre com paternalismo. Se ‘Jane Eyre’ fosse escrito por um homem, sua protagonista seria uma mulher desvalida e vítima de todos. Mas Charlote Brontë conta a história de uma mulher que luta para ser independente e que resiste a ser apenas “mulher de”, e o que aparece é o oposto luminoso de ‘Madame Bovary’. Existe um fundo romântico, é verdade, mas não é o que importa: o essencial é que Jane Eyre fala diretamente ao leitor, conta-lhe sua vida e o faz partícipe dela. Relata de forma direta e apaixonada como era a vida provinciana da Inglaterra vitoriana, fugindo do vitimismo e da autocompaixão. Um romance apaixonante.

‘A Hora da Estrela'(1977), de Clarice Lispector
A prestigiosa filósofa Hélène Cixous considerava essa autora brasileira de origem ucraniana como um exemplo perfeito de “escrita feminina”, uma polêmica categoria estilística. Em todo caso, e filosofia à parte, ‘A Hora da Estrela’ é o texto mais acessível de Lispector e a melhor introdução possível à obra. Sua protagonista, Macabea, é uma migrante perdida no Rio de Janeiro, vive sem saber para quê. Depois de perder a tia, aluga um quarto, emprega-se como datilógrafa e se apaixona por Olímpio de Jesus – que logo a trai com uma colega de trabalho. 
Resenha: O último livro escrito por Clarice Lispector é também uma despedida. Lançado pouco antes de sua morte, A hora da estrela conta os momentos de criação de Rodrigo, o escritor que narra a história de Macabéa. Ela sabia que a morte estava próxima e coloca um pouco de si nas personagens. Ele, um escritor à espera da morte; ela, uma solitária que gosta de ouvir a rádio Relógio e que passou a infância no Nordeste, assim como Clarice. A despedida da autora é uma obra instigante e inovadora. Como diz Rodrigo, estou escrevendo na mesma hora em que sou lido. É a autora contando uma história e, ao mesmo tempo, revelando ao leitor seu processo de criação e sua angústia diante da vida e da morte.

‘A Odisséia de Penélope’ (2005), de Margaret Atwood
A escritora canadense Margaret Atwood é romancista, poetisa, contista e ensaísta e ganhou o Prêmio Arthur C. Clarke e o Prémio Príncipe das Astúrias na categoria “letras”.
O livro é narrado por Penélope e sua trajetória depois de morta, contando fatos de sua vida. Ao mesmo tempo, assombrada pelas doze escravas que a ajudaram a enganar e distrair os homens (pretendentes) que tentavam usurpar o trono de Ulisses, seu marido, e foram enforcadas injustamente.
Margaret Atwood dá voz a nós mulheres dentro do clássico. Penélope pode ser conhecida parcialmente por sua fidelidade a seu marido, mas enganam-se os que só acham isso, pois Penélope possui todas as características gregas de um herói que são honra (τιμή, virtude (αρετή, glória (κλέος) e é tão divina quanto Ulisses. Penélope é uma heroína da história.

Contos D'escárnio/textos grotescos'(1990) de Hilda Hilst
Trata-se de uma sátira muito divertida, com doses generosas de ironia, muito bem estruturada, típica de uma grande escritora. Em “Contos D’Escárnio”, Hilda Hilst deixou-se “incorporar” por um personagem masculino, um sessentão chamado Crasso. Coincidentemente a mesma idade da autora, em 1990, ano da publicação do livro. Em primeira pessoa, como todo livro de memórias, o narrador Crasso registra suas “safadezas da maneira mais chula possível”, deixando o leitor completamente pasmo, embasbacado, pois, independentemente do fato de sabermos distinguir autor e obra, inconscientemente acabamos por vincular uma coisa e outra. É natural. E quem escreveu o livro foi uma “Senhora” de 60 anos. Até poderia ser comum uma senhora escritora de 60 anos escrever sobre “auto-ajuda”; “livro-psicografado”; “coisas religiosas”; “memórias-reais” [...]. Mas não com Hilda Hilst. Não há como enquadrar Hilda Hilst dentro do padrão médio de uma mulher brasileira de 60 anos. Hilda Hilst é um fenômeno, tanto poeta como prosadora.

'Mrs. Dalloway'(1925) de Virginia Woolf
Toda a história do romance se passa num único dia, em junho de 1923, em que Clarissa Dalloway resolve, ela mesma comprar flores para a festa que vai oferecer logo mais, à noite, em sua casa. A partir desta cena inicial, o romance segue a protagonista pelas ruas de Londres num ritmo cinematográfico, registrando suas ações, sensações e pensamentos. Em torno de Clarissa, gravitam vários personagens: o marido Richard Dalloway, a filha Elizabeth, um amigo de juventude que acaba de voltar da Índia, Peter Walsh, com quem ela tem grande conexão afetiva. Até mendigos que ela encontra na rua e o próprio Primeiro-Ministro vão entrar na história. Certos personagens atravessam o caminho de Clarissa, sem que ela se dê conta, e passamos a segui-los. É o caso de Septimus Warren Smith, um ex-combatente da Primeira Guerra Mundial arruinado pela doença mental.
Há simetrias, ressonâncias e descontinuidades, numa trama muito bem urdida por Virginia Woolf. A autora é prodigiosa na exploração dos desvãos da consciência e das ambiguidades entre os afetos e as convenções sociais. Passado e presente se intercalam, e acessamos os vários planos da subjetividade por meio de um elaborado uso do discurso indireto livre. Muito já se comentou sobre Mrs. Dalloway, desde que o livro foi publicado pela primeira vez, em 1925. O romance já foi considerado impressionista, criticado pela falta de unidade e reverenciado por ser revolucionário em termos de linguagem. Já se disse que a obra é incrivelmente contemporânea, fazendo uso de técnicas de justaposição e montagem, como no cinema. Há quem trate o livro como um romance feminino. Ou como um brilhante ensaio filosófico. Mrs. Dalloway também pode ser lido como um documento das transformações sociais e políticas dos anos 1920, ou como um romance psicológico. Ou mesmo como uma vibrante história de amor, com final aberto. A última palavra, evidentemente, é sempre do leitor.

A lista pode continuar interminavelmente...

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